Desde o ano passado, ações encaminhadas ao Supremo Tribunal Federal (STF) e julgadas pela Corte reacenderam a discussão sobre a descriminalização do aborto no país. Nesta semana, uma nova ação protocolada no tribunal pede que o aborto deixe de ser considerado crime até a 12ª semana de gestação, em qualquer situação. Também está na pauta da Corte neste ano o tema do aborto em caso de contaminação da mãe com o vírus Zika. Por outro lado, tramitam no Congresso Nacional mais de 30 projetos sobre o assunto, a maioria deles restringindo as possibilidades legais para a prática.
A ação impetrada essa semana pelo PSOL e a ONG Anis ainda não tem previsão para julgamento. Já a ação da Associação Nacional de Defensores Públicos (Anadep), que trata da descriminalização do aborto em caso de infecção por Zika, já está pronta para julgamento. A relatoria é da presidente da Corte, ministra Cármen Lúcia. Entretanto, ainda não há data para entrar na pauta do plenário.
Legislativo
No ano passado, uma decisão da Primeira Turma do STF, ao julgar um caso específico, considerou que o aborto não era crime até a 12ª semana de gestação. Logo após o julgamento da ação, cuja relatoria foi do ministro Luis Roberto Barroso, a Câmara dos Deputados criou uma comissão especial para debater o assunto. O tema foi inserido dentro da discussão da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 58-A/2011, que trata na verdade sobre a licença-maternidade no caso de bebês prematuros.
O movimento que defende a descriminalização do aborto teme uma reação do Legislativo em direção contrária à decisão do Supremo do ano passado e a futuros debates sobre o tema. O risco, avaliam ativistas, é que a interrupção da gravidez seja considerada crime inclusive nos casos atualmente autorizados pela lei: estupro, má-formação do feto ou risco de vida para a mãe.
“A gente tem 34 projetos de retrocesso, alguns deles retiram direitos, como o PL 5.069/2013, que revoga a lei de atendimento à vítima de violência sexual [lei 12.843/2013]. Na verdade, a gente está vivendo hoje o que a gente chama de uma ofensiva conservadora, que se dá, sobretudo, pelo Legislativo”, diz a socióloga Joluzia Batista, colaboradora do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA) .
Outra proposta que prevê regras mais duras para o aborto é o Projeto de Lei 478/2007, conhecido como Estatuto do Nascituro, que transforma o aborto em crime hediondo e impõe ao Estado a obrigação do pagamento de auxílio às vítimas de estupro que engravidarem, para suprir as necessidades da criança. A proposta aguarda parecer na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), mas também após a decisão do STF, foi apresentado requerimento para urgência na apreciação da matéria.
De acordo com Joluiza, desde 2013, quando o deputado Marco Feliciano (PSC-SP) assumiu a presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, ampliaram-se no Legislativo as tentativas de barrar as leis pró-aborto. “Eles tem tentado nos últimos anos colocar o direito à vida desde a concepção, já entraram com pedido de urgência para votação do estatuto do nascituro, que é um perigo enorme para qualquer mulher, que chegar na unidade de saúde inclusive com aborto espontâneo, ela pode ser acusada de ter cometido um crime. É gravíssimo”, defende.
Autonomia
Um dos argumentos dos movimentos que defendem a descriminalização do aborto é o direito da mulher em decidir sobre o seu próprio corpo. Essa foi também a defesa do ministro Barroso, ao votar no julgamento de novembro. Para ele, se trata de questão de autonomia da mulher.
Mas para a professora Lenise Garcia, presidente do Movimento Nacional da Cidadania pela Vida – Brasil sem Aborto, o argumento de autonomia da mulher é falacioso. Isso porque, segundo ela, muitas gestantes são obrigadas pelos companheiros a interromper a gravidez. Ela defende que a decisão sobre a questão cabe ao Congresso e não ao STF.
“O Congresso Nacional é onde estão os nossos representantes, ele representa a população brasileira. A imensa maioria da população é contra legalizar o aborto e nós estamos corretamente representados no parlamento com relação a isso. Tirar isso e levar para o STF me parece um viés que é um prejuízo à própria democracia”, defendeu a professora ao participar do programa Diálogo Brasil, da TV Brasil.
Disputa
O senador Magno Malta (PR-ES) é relator de uma sugestão popular que tramita na Comissão de Direitos Humanos da Câmara, que trata da descriminalização até o terceiro mês de gestação. Ele destaca que, além das manifestações pró-aborto, a comissão também recebeu um abaixo-assinado, com mais de 20 mil assinaturas, contrário à sugestão. O documento foi formalizado por grupos ligados a várias igrejas. Ele defende que o tema deve ser decidido pelo Legislativo, e não pelo Judiciário.
“O papel do Supremo é julgar se uma lei é constitucional ou não. Não cabe a ele criar leis, pois não tem atribuição legislativa. Ao contrário, essa é atribuição do parlamento. Está na hora de fazer a Justiça brasileira entender qual é o seu papel. A cada audiência pública me convenço mais de que a vida começa na concepção e ninguém pode ser acintoso com ela. Deus deu a vida, só ele pode tirar, meu relatório será nessa linha”, adiantou.
Por outro lado, a deputada federal Érika Kokay (PT-DF), integrante das comissões de Direitos Humanos e Minorias e de Defesa dos Direitos da Mulher, considera que o tema já foi decidido pelo STF. Para ela, é “leviano” tratar do aborto “clandestinamente” dentro da discussão da PEC 58-A/2011, que trata de licença-maternidade no caso de bebês prematuros.
“Vamos estar nessa comissão, na verdade, o projeto assegura o direito do prematuro. É um arranjo leviano você introduzir uma discussão que diz respeito aos direitos sexuais e reprodutivos da mulher em uma PEC que, em princípio, a sua ementa não tem uma relação direta. São tentativas ocultas, subterfúgios de buscar colocar as mulheres mais uma vez sob o fogo da própria inquisição. Essa sanha persecutória contra as mulheres, que lembra a inquisição, tem como consequência continuar deixando milhões de mulheres que fazem aborto na clandestinidade”, diz a deputada.
Zika
Pesquisa da Fiocruz aponta que quase a metade das gestações com Zika levam a desfechos adversos, com alterações neurológicas ou morte fetal. Marisa Sanematsu, diretora do Instituto Patrícia Galvão, destaca que, no caso do Zika, o problema é gerado por uma incapacidade do Estado em controlar a proliferação do mosquito, que é o vetor da doença.
“Por incapacidade do Estado, você expõe as mulheres a um risco e as leva a uma gestação que tem como produto final uma criança que, depois de nascida, se nascida, será repleta de sequelas que vão exigir cuidados ininterruptos, muito investimento, fisioterapia e tudo mais. E o Estado também não vai dar isso. Então vamos ter que ter um debate sobre o direito da mulher em decidir se ela quer passar pelo sofrimento de não saber se o bebê que ela está gestando vai sobreviver e em que condições”, defende Marisa.
Para Lenise Garcia, a mera possibilidade de a criança ter alguma deficiência não pode justificar a interrupção da gravidez. “Me preocupa muito que se justifique um aborto pelo fato de que a criança possa ter uma deficiência. Isso me parece totalmente contrário à política para as pessoas com deficiência e ao reconhecimento do valor dessas pessoas. Nós acabamos de passar por uma Paralimpíada maravilhosa, em que nós vimos o potencial e o quanto a pessoa com deficiência pode contribuir para a sua família e para a sociedade. Então, quando a vinda de uma pessoa com deficiência é colocada como um ônus para a mulher, eu não posso concordar”, diz.
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Da Agência Brasil