Antes do brilho do sol tocar o chão, as cores da maravalha e do sal grosso começam a enfeitar as pedras que forram o Centro Histórico de São Cristóvão no Dia de Corpus Christi. Desde as 5h da manhã, moradores, estudantes, artesãos, visitantes e fiéis começam a desenhar símbolos de fé, identificação e conscientização por mais de 1000 metros em nove ruas da cidade, passando pelas sete igrejas e compondo um trajeto que une fé e expressão artística. Na última quinta-feira (19), cerca de 400 pessoas de diferentes idades, crenças e localidades demonstraram que, juntas, podem fazer as mais belas artes e manter viva a tradição centenária da Cidade Mãe de Sergipe.
Há 20 anos, a sancristovense Rita Menezes, por exemplo, iniciou a feitura dos tapetes ainda adolescente, pois fazia parte do Santuário Nossa Senhora da Vitória, realizador da tradição. Hoje aos 35 anos, a animação da juventude se tornou devoção à procissão que entende como a mais importante da fé católica, porque recebe o corpo de Cristo, e, por isso, todos os anos ela constrói os desenhos com sua família, cheios de muito amor.
“Uma coisa muito legal que eu notei este ano é a juventude vindo ajudar, os estudantes das escolas estão vindo com as professoras, Têm muitos idosos que, mesmo com as suas limitações, também estão aqui ajudando. Quem não pode mais estar fazendo o tapete, distribui alimento para quem está aqui ajudando. Então, assim, é realmente um momento de comunhão, de partilha e de amor intenso dedicado ao Senhor”, compartilhou Rita, mostrando a santa de seu nome desenhada ao chão.
Assim como ela, diversos moradores espalhados por todo o percurso contemplaram com suas artes as ruas Tobias Barreto, Praça do Carmo, Messias Prado, Engenheiro Botto de Barros, Almirante Amintas Jorge, Largo do Rosário, Rua do Rosário, Coronel Erundino Prado, Praça São Francisco e Ivo do Prado, retornando à Praça da Matriz, onde ocorreu o encerramento da celebração.
Essas artes, feitas com sal grosso, maravalha, pó de café, anilina, cascas de ovos e cascos de sururu e massunim, são uma tradição de origem europeia, que chegou ao Brasil durante o período colonial. Para a Igreja Católica, a confecção dos tapetes simboliza a acolhida de Jesus Cristo em Jerusalém, quando a população cobriu o caminho com ramos e mantos para a sua passagem.
Para Vânia Correia, coordenadora da confecção dos tapetes, o mais importante de todo o processo é perceber as sementes de seu trabalho de anos plantadas com a educação patrimonial sendo colhidas por meio da coletividade, pois assim, futuramente, a tradição não será perdida, perdurando por gerações. “O nosso tapete é secular e hoje podemos ver aqui várias equipes trabalhando juntas, como por exemplo a UFS, que trouxe 50 alunos, tem os grupos das pastorais, as escolas, o CAPS, então é muito gratificante saber que as pessoas corresponderam ao meu chamado para fazer esse símbolo de fé para o Corpo de Cristo”, contou.
A coordenadora também ressaltou a importância da parceria com a prefeitura: “A Prefeitura é nossa parceira, com a participação de várias secretarias, como a de Defesa Social, com a Superintendência Executiva de Transporte e Trânsito (Setran) e a Guarda Municipal viabilizando a proteção das ruas, assim como a Secretaria de Infraestrutura, a Secretaria de Saúde, com CAPS. Então, a paróquia tem um importante papel na realização, mas o apoio é da Prefeitura e das instituições parceiras”.
Apoio da Prefeitura
A Prefeitura de São Cristóvão disponibilizou cerca de 15 toneladas de sal grosso, um dos principais materiais para elaboração dos tapetes, além de garantir apoio logístico com transporte dos materiais, ordenamento do trânsito, limpeza urbana e segurança para todos os envolvidos.
“É importante que a gente mobilize toda a nossa população. Aqui, temos jovens, adultos e idosos participando, para que a cidade mantenha essa tradição histórica, que também é muito importante para o turismo. Recebemos vários turistas nesse período, e muitos deles podem voltar em outras oportunidades para conhecer ainda mais a nossa cidade, que é tão maravilhosa, a Cidade Mãe de Sergipe, uma cidade acolhedora”, afirmou o prefeito Júlio Nascimento, que também colocou a mão na massa para decorar os tapetes.
De acordo com o secretário de Desenvolvimento Econômico e do Trabalho, Josenito Oliveira, além da dimensão religiosa, a economia também conta com um impacto bastante positivo durante o Dia de Corpus Christi. “Essa tradição centenária atrai muitos turistas para cá, o que movimenta bastante a economia local, os restaurantes, as lanchonetes, o artesanato, a nossa gastronomia, que é tão rica. E tudo isso está ligado também a São Francisco, que é o patrono da humanidade. Isso representa muito para nós, é motivo de orgulho”, ressaltou.
Confecção coletiva
A confecção dos tradicionais tapetes de Corpus Christi em São Cristóvão, mais uma vez, só foi possível ser concluída em sua magnitude por conta da coletividade e união em sua elaboração. Entre os destaques, o Museu da Polícia Militar de Sergipe, patrimônio material do Estado que completou 190 anos, marcou presença com a construção de um trecho do tapete. A Rádio Cultura, que celebra 60 anos em 2025, também integrou o grupo de instituições que colaboraram na atividade.
Uma das colaboradoras mais atuantes foi a Universidade Federal de Sergipe (UFS), levando cerca de 50 alunos do curso de Artes Visuais e quatro professores, incluindo a professora Marjorie Garrido, que contribuiu diretamente na confecção e destacou a importância de aprender a trabalhar coletivamente e com imprevisibilidade para a formação artística dos seus alunos.
“É muito interessante que os estudantes, já no primeiro período, já tenham contato com a cultura do São Cristóvão, com as possibilidades da experimentação, do desenho, do simbolismo que é gerado a partir do Corpus Christi. Uma experimentação em coletivo exige decisões acordadas pelos colegas. E eu acho que isso é muito importante para a formação. Esse processo é muito válido para quem está principalmente vinculado à formação de artes visuais, porque tem muito uso do desenho, da expressividade, das cores, e principalmente relacionado ao sentido e a uma simbologia, além de ser uma experiência fenomenológica da cultura da cidade”.
Para o estudante de Artes Visuais Rodomilson Sobral, participar pela primeira vez da realização dos tapetes foi fundamental para perceber o quanto a cultura ainda existe, como ela está viva, e como os estudantes que estão iniciando no mundo das artes têm a chance de participar de algo tão histórico e marcante, a fim de manter essa história viva aqui, nas cidades, no chão. “A experimentação foi muito legal. Eu não tenho experiência nenhuma com a maravalha, nem com os materiais que a gente usou, mas a textura e a forma como vai construindo os desenhos é muito mágico. A gente nunca espera e as formas surgem de repente. Parece muito mágico”, encantou-se.
A Secretaria Municipal de Saúde de São Cristóvão reforçou seu compromisso com as atividades comunitárias por meio da participação do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Valter Correia. Por mais um ano consecutivo, profissionais e usuários do centro construíram uma grande parte dos tapetes, promovendo inclusão, criatividade e cuidado em saúde mental por meio da arte.
As escolas da rede municipal também estiveram envolvidas, levando estudantes de diversas idades para construir e aprender com a confecção dos tapetes de Corpus Christi. Uma delas foi a Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) São Cristóvão. As professoras Fernanda Kolming e Francismary levaram suas turmas de Artes e História, incluindo a Educação Patrimonial, para construir trechos dos tapetes. A atividade permitiu que os alunos do Ensino Fundamental entrassem em contato com o valor simbólico do Corpus Christi, a importância do patrimônio cultural da cidade e a religiosidade popular, além de aprenderem técnicas como o uso de anilina no sal grosso e a criação de desenhos com sal e maravalha sobre o chão.
“Eu puxo mais pelo fazer artístico, sempre explicando aos alunos que isso aqui não é só um ato católico, pois temos estudantes de diversas religiões, mas é um patrimônio deles, da cidade, que acontece há anos. Aí faço oficina de desenho, onde já montamos tapetes juntos. Muitos nem sabiam o que era maravalha, eu também não sabia no começo. Mostro o sal grosso com corante, como faz o desenho e já tem uns três anos que a gente traz tapetes prontos, alguns montados, outros pintados. Teve até um com canetinha hidrocor, mas com a chuva o desenho sumiu, e o papelão também molha, então vamos aprendendo com a experiência. E eles se envolvem, é uma maravilha”, detalhou a professora de artes Fernanda Kolming.
Desde o ano passado, a tradição dos tapetes também ganhou novos contornos com a chegada de uma proposta sustentável e artesanal. Pela primeira vez em 2024, a Casa de Costura Dona Zil e a Casa dos Saberes e Fazeres passaram a contribuir com tapetes feitos de tecido, criados por artesãs sancristovenses. Este ano, a iniciativa foi mantida e reforçada, não apenas valorizando o trabalho das artistas locais, mas também promovendo a sustentabilidade.
Os tapetes são confeccionados com retalhos de tecidos que sobram da produção de roupas e peças artesanais em São Cristóvão. Por serem reutilizáveis, eles se tornam uma alternativa ecológica aos tradicionais tapetes de sal e serragem, colaborando com o meio ambiente e abrindo espaço para a arte têxtil dentro da celebração religiosa. Segundo Sandra Rodrigues, responsável pela Casa de Costura Dona Zil, o tapete criado pelas artesãs trouxe símbolos dos quatro elementos da natureza, acompanhados de frases de conscientização, reforçando a mensagem sobre a importância de cuidar das ruas e do meio ambiente.
“A gente tem observado muito os restos de tecido que recebe como doação. E esse ano, com a campanha da fraternidade falando sobre não poluir o planeta, que é a nossa casa, pensamos nisso: se a gente poluir, não tem outro lugar pra morar. Então, fizemos o tapete com o tema ar, fogo, água e terra, e colocamos frases de impacto, como: ‘O mundo muda com seu exemplo’, ‘A terra pode suprir todas as necessidades do homem, menos a ganância’, e ‘Seja gentil com a natureza, você não vive sem ela’. A ideia é chamar atenção para o cuidado com o planeta. E usamos só materiais que não poluem, dando o exemplo com esse trabalho”, explicou Sandra.
Turistas animados
Os turistas também desempenharam um papel fundamental na celebração de Corpus Christi em São Cristóvão, não apenas como espectadores, mas também como participantes. Alguns visitantes se integraram às atividades e ajudaram na construção dos tapetes, tornando a experiência ainda mais rica e significativa.
Foi o caso dos visitantes de Aracaju, Tiago Rezende e Daniel Rocha. Para eles, que já costumavam frequentar o Festival de Artes de São Cristóvão, aproveitar a trégua da chuva para conhecer os tapetes de Corpus Christi pela primeira vez foi uma experiência renovadora. “É bonito ver a sociedade se mobilizando por algo em comum, o que hoje em dia é difícil. Jovens, estudantes, todo mundo. Literalmente com a mão na massa, ou melhor, com a mão na serragem, no pó colorido. É lindo de ver”, destacou Daniel.
A presença do público de fora foi essencial para a valorização e divulgação dessa tradição centenária, que é um dos maiores símbolos de fé e cultura da cidade. Exemplos como Dona Edith e Maria de Lourdes, que vieram de Ponta Grossa, no Paraná, para conhecer a história e a religiosidade de São Cristóvão, ilustram esse movimento. Elas ficaram impressionadas com a beleza dos tapetes e, sobretudo, com a união da população local para manter viva essa expressão de espiritualidade coletiva.
“Está sendo muito bonito ver os tapetes hoje. O significado é o Corpo de Cristo, que é o que nos alimenta. Achei tudo muito lindo, principalmente as crianças, isso é algo que não tem nem palavras. Desde pequenas, elas já vêm com essa mentalidade cristã, sem maldade, e isso é muito bonito de ver”, alegrou-se Edith.
O evento foi encerrado com uma missa no Santuário Nossa Senhora da Vitória, seguida pela procissão que passa pelos tapetes de Corpus Christi, considerada a mais importante entre as tradições da igreja. Levando novamente às ruas fiéis, visitantes e moradores, a Cidade Mãe de Sergipe concluiu um dia histórico em um momento de profunda fé, beleza e união.