Em Sergipe, a resistência LGBTQIAPN+ se fortalece nas bordas das cidades, nos coletivos e movimentos que escutam e acolhem. Em um cenário ainda marcado por preconceito, exclusão e violência, são os projetos sociais que constroem redes de apoio, transformam realidades e ampliam horizontes. No Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAPN+, celebrado neste sábado, 28 de junho, o Portal SE Notícias apresenta algumas dessas iniciativas que, com coragem e afeto, resistem, acolhem e promovem mudanças concretas para a comunidade LGBTQIAPN+ no estado.
Mas antes de apresentar os projetos, é fundamental compreender o contexto em que eles atuam, pois só assim é possível dimensionar a importância dessas iniciativas para a comunidade LGBTQIAPN+. Segundo pesquisa do Instituto Datafolha divulgada em 2022, mais de 15,5 milhões de brasileiros se identificam como LGBTQIAPN+, o que representa 9,3% da população com 16 anos ou mais.
Apesar desse número, essa população enfrenta índices alarmantes de violência física, verbal e institucional, sobretudo pessoas trans e travestis, que vivem em média apenas 35 anos, segundo levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA). Nos últimos nove anos, mais de mil vidas trans e travestis foram interrompidas no Brasil, de acordo com a Rede Trans Brasil, sendo 105 desses casos registrados somente em 2024. Entre 2022 e 2023, a violência contra homossexuais e bissexuais cresceu 35%, enquanto contra pessoas trans e travestis aumentou 43%, segundo dados do Ministério da Saúde.
Além disso, a Pesquisa Nacional de Saúde do IBGE (2019) aponta que a população LGBTQIAPN+ sofre desigualdades socioeconômicas significativas: a taxa de desemprego é 1,7 vez maior que a da população geral, e a informalidade no trabalho chega a 48%, enquanto entre a população geral é cerca de 39%. Também há menor acesso à educação formal, com 25% menos pessoas LGBTQIAPN+ concluindo o ensino médio ou superior em comparação com a média nacional. Esses dados reforçam a necessidade de políticas e ações específicas para a inclusão e valorização dessa comunidade.
Esse cenário evidencia a urgência de políticas e ações específicas de acolhimento e inclusão. Em Sergipe, diante da ausência de políticas públicas efetivas, os projetos sociais têm se destacado como redes de apoio essenciais para o enfrentamento da exclusão e da violência. Confira a seguir algumas dessas iniciativas que atuam com coragem e compromisso no estado.
CasAmor Neide Silva
No bairro Inácio Barbosa, em Aracaju, a CasAmor Neide Silva se consolidou como um espaço fundamental de acolhimento, escuta e reconstrução para pessoas LGBTQIAPN+ em situação de vulnerabilidade. Fundada em 17 de dezembro de 2017, a instituição leva o nome de Neide Silva, uma mulher negra, bissexual, mãe de LGBTQIAPN+, como ela mesma gostava de se apresentar. Voluntária incansável, faleceu em 2021 em decorrência da pandemia da Covid-19, deixando um legado que segue vivo no trabalho realizado diariamente pelos voluntários da instituição.

A CasAmor Neide Silva se consolidou como um espaço fundamental de acolhimento, escuta e reconstrução para pessoas LGBTQIAPN – Foto: ascom/divulgação
Inicialmente, a proposta do projeto era oferecer uma casa de passagem, mas a falta de recursos e questões técnicas inviabilizaram essa possibilidade. Assim, o grupo direcionou seus esforços para o acolhimento feito de outras formas, contando com uma equipe de voluntários de diversas áreas profissionais oferecendo suporte psicossocial, orientação jurídica, campanhas de doação e ações culturais.
Rafael dos Santos Machado, professor de História, museólogo e atual presidente da CasAmor, explica que o trabalho vai muito além do atendimento inicial. “Nós acompanhamos desde o acolhimento, oferecendo suporte psicológico e orientação jurídica, até tentativas de mediação familiar ou auxílio na busca por moradia temporária junto a parentes”, conta.
Durante a pandemia, a organização ampliou sua atuação na distribuição de cestas básicas e kits de higiene para pessoas LGBTQIAPN+ em situação de insegurança alimentar. Rafael destaca que o volume de pedidos cresceu muito, incluindo solicitações de diversas cidades do interior do estado. “Muitas pessoas não conseguiam comprovar residência para acessar benefícios sociais. Nós orientávamos, fazíamos a ponte com os serviços e, sempre que possível, oferecíamos ajuda direta.”
A parceria com o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) também tem sido um ponto importante. Desde 2018, pessoas LGBTQIAPN+ em situação de rua foram encaminhadas para ocupações urbanas, como a Beatriz Nascimento, onde a CasAmor oferece suporte jurídico e promove debates sobre LGBTfobia nesses espaços.
Hoje, o maior desafio da organização é a sustentabilidade financeira. Toda a manutenção depende de doações voluntárias, já que não recebem apoio de políticas públicas ou convênios governamentais. Rafael conta que, mesmo com profissionais excelentes, a equipe de nove pessoas precisa conciliar seus empregos com o trabalho voluntário, o que limita o atendimento diante da grande demanda.
Para ele, a existência da CasAmor é, por si só, uma denúncia. “A CasAmor existe porque há uma realidade de negligência do poder público.” Rafael reforça que o preconceito está muito presente dentro das próprias casas, locais onde deveria haver proteção. “Existem pessoas LGBTQIAPN+ expulsas do seu ambiente familiar apenas por causa da sua sexualidade ou identidade de gênero. Há a expulsão direta, quando a pessoa é colocada para fora, e a indireta, que é a reprovação constante e a tentativa de deslegitimar o jeito de ser. Isso é uma violência psíquica, que se soma às violências física e simbólica.”
Ele aponta que grande parte desse cenário está ligado a visões moralistas baseadas em princípios religiosos que veem a existência LGBTQIAPN+ como algo errado. “A realidade é perversa. Para muitos, o espaço familiar não é seguro. Pelo contrário, é um lugar de insegurança e violência, onde se torna impossível permanecer. A casa, no sentido tradicional, muitas vezes não acolhe.”
Por isso, o nome CasAmor tem um significado profundo. “Quando pensamos em casa, imaginamos segurança, acolhimento e proteção. A CasAmor surge justamente para dar esse sentido a quem teve isso negado.”
Mães pela Diversidade
Se a violência contra pessoas LGBTQIAPN+ começa muitas vezes dentro de casa, há também famílias que escolhem amar e lutar. Desde 2019, o núcleo sergipano do Mães pela Diversidade atua no acolhimento de famílias e na defesa de direitos para filhos, filhas e filhes LGBTQIAPN+.

Mães pela Diversidade atua no acolhimento de famílias e na defesa de direitos para filhos, filhas e filhes LGBTQIAPN+ – Foto: ascom/divulgação
A iniciativa reúne cerca de 83 pais, mães e familiares de pessoas LGBTQIAPN+. O trabalho do grupo é pautado no apoio a essas famílias que, muitas vezes, convivem com o medo da violência social, da insegurança jurídica, do preconceito e da exclusão. Mais do que isso, o grupo soma forças na luta pela extinção do preconceito e pela garantia dos direitos civis das suas crias.
Alessandra Tavares, advogada, coordenadora do Mães pela Diversidade em Sergipe e vice-presidenta nacional do movimento, destaca a importância do grupo no estado. “Mães e pais de LGBTQIAPN+ se unem preocupados com o avanço do fundamentalismo religioso, a insegurança jurídica, o preconceito e a violência contra a população LGBTQIA+. Lutamos pelos direitos civis de nossas filhas, filhos e filhes.”
O diálogo com órgãos públicos é uma marca da atuação do grupo. Alessandra cita parcerias com a segurança pública, como o Instituto de Identificação, que contribuíram para que a população trans e travesti começasse a utilizar o nome social nos documentos de identidade, incluindo crianças trans. O movimento também atua junto à Secretaria de Educação para a inclusão do nome social nas matrículas escolares do ensino médio. Palestras em escolas públicas são promovidas com o objetivo de levar conhecimento e respeito através do diálogo.
Além disso, o grupo promove encontros em espaços públicos para mostrar que essas famílias existem e para celebrar a diversidade e o orgulho que sentem de suas filhas e filhos. Alessandra relata: “Não temos um número exato de quantas pessoas já receberam nosso suporte, pois isso acontece diariamente. Sempre que alguém chega, imediatamente oferecemos apoio psicológico e contato com instituições que possam ajudar.”
Entre os desafios, Alessandra aponta o crescimento da extrema-direita conservadora que tenta apagar a existência da população LGBTQIAPN+. “Mas, na contramão disso, dizemos que não recuaremos e ninguém vai voltar para o armário.”
Ela também ressalta a importância das políticas públicas de saúde específicas para a população trans e travesti, que ainda são negligenciadas pelo poder público, e a necessidade de ações de inclusão e combate ao preconceito que garantam a permanência dessas pessoas na escola e o direito de sonhar com um futuro digno. “A importância do Mães pela Diversidade está em lutar para que nossos filhes não entrem nas estatísticas tenebrosas do Brasil. Todos os dias gritamos para o mundo que temos muito orgulho de nossas crias. Nosso lema é: ‘tire seu preconceito do caminho que vamos passar com nosso amor’.”
Gaymado Aju
Outro espaço de resistência nasce da leveza. O Gaymado Aju, criado em 2017, transformou o tradicional jogo de queimado em uma prática política e afetiva. As partidas, realizadas principalmente na Orla de Atalaia, ressignificam memórias de infância. Para muitos homens gays, o queimado era proibido, considerado brincadeira de menina, usada como instrumento de exclusão.

O Gaymado Aju, criado em 2017, transformou o tradicional jogo de queimado em uma prática política e afetiva – Foto: ascom/divulgação
Reunir-se para jogar é, portanto, mais do que recreação. É um gesto de reconquista do espaço público e de celebração da liberdade de existir. É o que reforça Antônio Francisco dos Santos Neto, arquiteto e urbanista, e um dos organizadores do Gaymado. “É um espaço de encontro, empoderamento e inspiração. Ao ocupar locais públicos com leveza e espontaneidade, provocamos, convidamos e transformamos. Queremos que as pessoas nos vejam jogando e se sintam à vontade para se aproximar. Que entendam que esse também é um espaço delas.”
O coletivo funciona de forma horizontal e voluntária, com oito pessoas responsáveis pela produção, comunicação e organização das partidas. A divulgação ocorre principalmente pelo Instagram, e os encontros são realizados bimestralmente. Apesar das dificuldades logísticas, como a precariedade das quadras públicas e a ausência de apoio financeiro, o projeto tem perspectiva de crescimento.
Além das partidas, o grupo tem buscado fortalecer parcerias com outros coletivos e ampliar sua presença nas redes sociais. A ideia é transformar o Gaymado em uma plataforma que dialogue com outras pautas da comunidade LGBTQIAPN+, ultrapassando o esporte. Entre as parcerias mais próximas estão a ASTRA e o Mães pela Diversidade, com quem compartilham vivências e participam de eventos como a Parada LGBTQIAPN+ em Sergipe.
Ao ocupar o espaço urbano com alegria, o Gaymado se insere em uma longa tradição de resistência por meio da arte, do corpo e do coletivo. Ali, cada jogo é também um recado: “Estamos aqui. E este também é nosso lugar.”
A rede se fortalece
A CasAmor, o Gaymado e o Mães pela Diversidade não estão sozinhos. Em Sergipe, diversas outras iniciativas constroem a base de apoio à população LGBTQIAPN+. Outras instituições que, ao longo dos anos, têm defendido a comunidade são: Associação de Travestis e Transexuais de Aracaju (ASTRA), Associação de Travestis Unidas na Luta pela Cidadania (UNIDAS), Projeto Remonta, ADHONES, Movimento de Lésbicas de Sergipe (MOLS), Associação e Movimento Sergipano de Transexuais e Travestis (Amosertrans) e Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT).
Por Yago Andrade/ Se Notícias
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