A flexibilização das regras para posse de armas de fogo, determinada em decreto pelo presidente Jair Bolsonaro na última semana, reacendeu um debate espinhoso: a relação entre a circulação de armas de fogo e criminalidade.
Em entrevista para a Globo News, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, disse que “essa questão de estatística, de causa de violência, sempre é um tema bastante controvertido. Claro que especialistas que trabalham com isso devem ser valorizados, até valorizamos isso reportando a estatística colhida por institutos, mas o fato é que isso é controverso.”
O tema não é mesmo fácil de estudar: a violência é um fenômeno complexo e de muitas causas, e os países mais violentos costumam ser países subdesenvolvidos, onde os dados são menos consolidados.
Grande parte dos estudos acaba tendo como foco os Estados Unidos, que é um ponto fora da curva em termos de mortes por armas de fogo comparado com países do mesmo nível de desenvolvimento.
No entanto, ao dizer que “se a política de desarmamento fosse tão exitosa, o que teria se esperado era que o Brasil não batesse ano após ano o recorde em número de homicídios”, o ministro ignora o princípio de que “correlação não implica causalidade”.
Em resumo: não é porque uma coisa aconteceu antes da outra ou seguem a mesma linha que as duas estão conectadas como causa e efeito (ou falta de efeito).
A literatura acadêmica sobre a relação entre armas e mortes violentas feita com modelagem complexa não é especialmente controvertida, de acordo com uma análise de Thomas Conti, professor auxiliar no Insper e doutorando em Economia.
Ele compilou as dezenas de pesquisas sobre o tema publicadas entre 2013 e outubro de 2017 publicadas por grandes periódicos internacionais com revisão por pares.
34 dos estudos apresentam resultados contrários à “Mais Armas, Menos Crimes” e apenas 7 tem resultados favoráveis à alguma versão da hipótese, sendo a maioria textos de resposta a críticas à trabalhos mais antigos ou textos que já foram criticados posteriormente.
A sua conclusão: “não há nenhuma margem empírica para expressar confiança ou menos ainda certeza na tese “Mais Armas, Menos Crimes” e há “evidências fortíssimas” de que mais armas aumentam o número também de mortes acidentais e suicídios.
Ele também destaca as chamadas meta-análises, que são revisões de vários estudos para chegar a uma conclusão final, publicadas em periódicos com revisão por pares entre 2012 e 2017.
De 10 meta-análises, nove concluíram que a literatura empírica é amplamente favorável à conclusão que o número de armas tem efeito positivo sobre homicídios, violência letal e alguns outros tipos de crime.
Além disso, o estudo internacional com metodologia mais rigorosa e base de de dados mais ampla (Donohue et. al., de junho de 2017) é totalmente contrário à tese.
A maior parte das pesquisas realizadas no Brasil também vão na mesma direção; o próprio Atlas da Violência, usado pelo governo no decreto como base de dados, concluiu que o Estatuto do Desarmamento interrompeu uma “corrida armamentista” e ajudou a desacelerar a alta de homicídios.
Em um manifesto publicado em setembro de 2016 contra a revogação do Estatuto, 57 especialistas no tema destacaram as “evidências empíricas robustas” na literatura acadêmica comprovando a associação:
“Esses estudos, conduzidos em inúmeras instituições de pesquisa domésticas e internacionais, levam à conclusão inequívoca de que uma maior quantidade de armas em circulação está associada a uma maior incidência de homicídios cometidos com armas de fogo. Essas evidências foram encontradas por cientistas e pesquisadores independentes, tanto do Brasil quanto do exterior, treinados em metodologias estatísticas rigorosas aceitas na academia internacional”.
A análise dos estudos, é claro, não esgota o tema: a discussão sobre posse de armas também passa pelo debate sobre o que os cidadãos consideram como seus direitos individuais inalienáveis.
Também é possível que o consenso científico venha a se modificar diante de novos dados: é assim, afinal, que funciona a ciência, enquanto a política segue a própria lógica.
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Por João Pedro Caleiro, da Revista Exame