a primeira campanha eleitoral pós-Ficha Limpa, iniciada oficialmente nesta sexta-feira (6/7), a Justiça Eleitoral ainda tem mais perguntas que respostas. Publicamente, tanto o Tribunal Superior Eleitoral quanto a Ordem dos Advogados do Brasil já manifestaram preocupação com o que a falta de jurisprudência pode interferir ou atrasar no processo de escolha de prefeitos e vereadores este ano. Enquanto comemora a barreira para os chamados “fichas sujas”, a Procuradoria Regional Eleitoral de São Paulo, responsável por fiscalizar o maior colégio eleitoral do país, também estuda como aplicar a lei e impedir candidaturas fora do novo critério de elegibilidade.
Para tentar centralizar informações e na falta de uma regulamentação do TSE, o órgao criou um banco de dados com os potenciais inelegíveis, que ficará disponível, pelo menos no pleito atual, apenas para consulta dos promotores. O cadastro reunirá informações de processos em andamento vindas do do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, do Tribunal Regional Eleitoral, do Tribunal de Justiça e dos tribunais de Contas do estado e dos municípios, além das fornecidas pelos membros dos Ministérios Públicos estadual e federal.
Segundo André de Carvalho Ramos, recém-empossado procurador regional eleitoral no estado, o desafio é agir dentro do prazo previsto pela legislação. De acordo com a Lei Complementar 135 — a Lei da Ficha Limpa —, a Procuradoria tem cinco dias, contados da data do registro da candidatura, para impugnar o aspirante ao cargo público. O período exíguo, segundo ele, exige mudanças nos instrumentos à disposição dos promotores. “Será inevitável pensar num cadastro nacional de inelegíveis, com atualização on-line”, disse em entrevista à ConJur. Procurador substituto na gestão anterior — de Pedro Barbosa Pereira Neto —, Ramos, empossado como titular em junho, ficará à frente da PRE-SP entre 2012 e 2014.
Uma de suas primeiras preocupações no cargo foi garantir o cumprimento das cotas por gênero exigidas pela lei eleitoral em relação ao total de candidatos registrados por partido. Em ofícios enviados às legendas, o procurador-regional lembra que a norma determina um mínimo de 30% de representantes de cada sexo. Em março, a Procuradoria promoveu audiência pública sobre o tema. Ele defende a criação de um auxílio obrigatório para as candidatas como forma de impedir “candidaturas laranjas”, feitas apenas para cumprir formalmente as cotas.
Especialista em Direitos Humanos, André Ramos é professor doutor e livre-docente de Direito Internacional e do Programa de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Sua atuação em relação a temas de imprensa que lhe garantiu notoriedade nacional. Contrário à exigência do diploma de jornalismo para o exercício da profissão, ele foi o autor da ação que resultou no fim da obrigatoriedade do diploma por decisão do Supremo Tribunal Federal. Em sua avaliação, a corte cumpriu seu papel: o de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, entre eles, o da livre manifestação do pensamento.
Leia a entrevista:
ConJur — Qual a expectativa para as primeiras eleições em que a Lei da Ficha Limpa poderá ser aplicada?
André de Carvalho Ramos — As eleições de 2012 serão o primeiro teste depois de o Supremo ter considerado constitucional a Lei da Ficha Limpa, inclusive em relação a fatos pretéritos. Essa foi uma parte importante da decisão. Se ela valesse só para fatos ocorridos depois da sua sanção, levaria alguns anos para vê-la com sua força total. A Lei Complementar 135 tem diversas hipóteses de inelegibilidade. Não envolve somente as condenações criminais, mas especialmente condenações cíveis, tanto por improbidade quanto nas ações cíveis eleitorais, além das reprovação de contas pelos tribunais de contas dos estados, dos municípios e da União. Por isso, temos nos esforçado para que esses órgãos publiquem essas informações.
ConJur — A lei terá efetividade total nessas eleições?
André de Carvalho Ramos — O Tribunal Superior Eleitoral não regulamentou um grande cadastro nacional de inelegíveis. São os procuradores regionais eleitorais que estão buscando essas informações. Essa é a nossa atividade hoje: inserir esses dados de maneira adequada, no nosso site, para consulta. Apesar de não ser comum um político tentar ser eleito em outras localidades, isso não é impossível de ocorrer. Como o critério de inelegibilidade o acompanharia, é necessário que se tenha dados de outros órgãos, inclusive de outros estados. O promotor tem um prazo muito exíguo para impugnar a candidatura de um ficha-suja.
ConJur — Qual é o prazo?
André de Carvalho Ramos — São cinco dias contatos do registro da candidatura. Há um pedido de registro eletrônico, mas o candidato não é obrigado a apresentar todas as informações que o tornariam inelegível. Isso seria um dever dele, mas é uma posição que também está superada. A lei fala só em certidão criminal. Será inevitável pensar num cadastro nacional de inelegíveis, com atualização online.
ConJur — O cadastro feito pelos procuradores vai ser público?
André de Carvalho Ramos — Nesse momento, estamos pensando em fornecer apenas ao promotor, que precisa checar esses dados com exatidão no momento da candidatura. A Lei da Ficha Limpa estabelece, por exemplo, no caso de improbidade, a chamada improbidade qualificada. É preciso haver prova do dano, do ato doloso com dano ao erário e enriquecimento ilícito. Não basta a condenação. É preciso que se leia o acórdão.
ConJur – Há possibilidade de um “ficha suja” impugnado participar da eleição?
André de Carvalho Ramos — A lei eleitoral permite que ele concorra “sub judice”. No caso das eleições majoritárias (prefeito e vice-prefeito), a lei permite que o candidato renuncie e seja substituído por outra pessoa, até a véspera do pleito, o que faz com que haja a situação aberrante de o eleitor votar com a urna eletrônica contendo a foto do político que renunciou. Assim, ele faz a campanha mesmo inelegível e consegue, depois, eleger alguém de sua confiança. Isso é fraude à lei e estaremos atentos para orientar os promotores para ingressar com as ações cabíveis.
ConJur — Quantos procuradores estarão engajados nessas eleições?
André de Carvalho Ramos — Temos em torno de 20 pessoas, contando os estagiários, e atuamos em todos os casos do TRE, além de termos iniciativa de propositura de ações, atuação em procedimentos extrajudiciais, audiências públicas e ainda designação de promotores e coordenação da atividade eleitoral do MP no estado. Não requisitamos funcionários de outros órgãos. Temos como ponto de honra profissionalizar a função eleitoral do Ministério Público Eleitoral.
ConJur — Uma de suas primeiras medidas no cargo foi oficiar os partidos para que cumpram a cota por sexo nas candidaturas. Essa é uma prioridade?
André de Carvalho Ramos — A lei fala em 30% de um sexo e 70% do outro. Mas a prática indica que as mulheres são sub-representadas. Fizemos, desde 2011, um esforço de consciência pública com as “secretarias de mulheres” dos partidos. Dentro dessa linha de transparência da Lei de Acesso à Informação cabe também revelar ao público os partidos que, por exemplo, não apresentaram “ficha-suja” e os que não cumpriram a cota de sexo. Ou os que cumpriram as cotas de sexo, mas suas candidatas não tiveram movimentação de campanha — o que a gente chama de “candidatura laranja”. É uma candidatura que existe formalmente, mas sem movimentação. Você não é obrigado a sair da sua casa ou ligar para as pessoas. Em audiências públicas, as candidatas falaram: “É bonito dizer que eu tenho direito a ser candidata, só que não tenho estrutura.” A grande questão é como se dá o financiamento dessa candidatura. É preciso que exista uma obrigatoriedade também de auxílio a essas candidatas.
ConJur — A Procuradoria tem obtido sucesso em suas ações na Justiça Eleitoral?
André de Carvalho Ramos — Temos obtido êxito. O TRE-SP cassou, com base nas nossas ações, mais de 15 vereadores por infidelidade partidária. Em alguns casos da capital, houve propositura por parte do próprio partido. O partido tem 30 dias para entrar com ação. Isso também gerou um estresse muito grande, porque tivemos que desenvolver um sistema de informação para obter esses dados, já que a filiação ocorre na zona eleitoral, mas a resolução fala que não cabe ao promotor propor a ação, mas ao procurador regional. O prazo para isso é curto. Terminados os 30 dias do partido de origem — o partido traído —, nós temos mais 30 dias. São 60 dias e acabou-se. O candidato passa a ser intocável.
ConJur — O voto do preso provisório é uma realidade?
André de Carvalho Ramos — A Procuradoria Regional Eleitoral se bateu pela implementação desse direito e foi derrotada inicialmente. Mas logo depois o TSE regulamentou. A resolução do TSE avançou porque reconheceu o direito, mas com limites, tendo em vista determinadas condições administrativas e de segurança. Fizemos uma reunião no Tribunal Regional Eleitoral com o secretário de Administração Penitenciária e outras autoridades, e multiplicamos o número de seções em estabelecimentos prisionais e unidades de internação. Em 2012, serão 144.
ConJur — O financiamento das campanhas apenas por pessoas físicas reduziria o número de casos de corrupção?
André de Carvalho Ramos — Sou favorável. Temos graves problemas com as doações de pessoas jurídicas, e o artigo 24 da Lei das Eleições é insuficiente — pelo menos a interpretação que se deu a ele. Nós impugnamos em 2010 várias doações de sociedades de propósito específico. Elas não eram concessionárias de serviço público, mas suas controladoras eram. Fizemos um esforço e entramos com 1,3 mil ações questionando doações acima do limite de 2% do faturamento das empresas. Se todas as multas fossem aplicadas no patamar mínimo, daria em torno de R$ 130 milhões.
ConJur — A aprovação das contas de campanha como critério de elegibilidade divide a jurisprudência e já levou o TSE a decisões antagônicas em poucos meses. Há políticos que alegam que a exigência é um risco porque as contas podem ser rejeitadas por uma formalidade, um preenchimento errado, por exemplo. É um receio plausível?
André de Carvalho Ramos — Essa alegação não prospera. Já existe na legislação a chamada aprovação com ressalvas. O TRE-SP e o TSE aplicam o princípio da insignificância. Já existem instrumentos para superar o trauma do erro do contador inexperiente e ocorre diuturnamente. O trauma do candidato que não tem condições de contratar um grande escritório de contabilidade é uma lenda.
ConJur — Qual é o risco de a Justiça Eleitoral extrapolar ao interferir na campanha?
André de Carvalho Ramos — Não vejo isso como um grande problema. É o modelo que o Brasil adotou e que acabou incorporando vários papéis para a Justiça Eleitoral. Cumprindo-se o que a Constituição determina sobre o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório, não vejo isso como um mal.
ConJur — O afastamento do desembargador Alceu Navarro do TJ-SP levantou a questão se ele poderia continuar presidindo o TRE-SP. Juízes estaduais ocupam a maior parte da corte do Tribunal Regional Eleitoral, mas o Judiciário estadual pode interferir no TRE?
André de Carvalho Ramos — O Tribunal de Justiça não poderia suspender as funções de um juiz de um tribunal federal, porque o Tribunal Regional é federal. Ele conta com orçamento da União. Senão se extermina a autonomia de um tribunal federal. A Procuradoria vai esperar o desdobramento e o surgimento de fatos novos, para depois avaliarmos.
ConJur — A Lei de Acesso à Informação muda alguma rotina nas eleições?
André de Carvalho Ramos — No Direito Eleitoral, alguns instrumentos já caminhavam nesse sentido. Um exemplo é a obrigação do candidato de ter uma conta corrente, CNPJ da campanha e prestar contas que revelem, inclusive, as chamadas doações estimadas. A Lei de Acesso reforça esse vetor de transparência.
ConJur — Que tipo de papel a imprensa pode exercer nas eleições?
André de Carvalho Ramos — O papel da imprensa na aplicação da Lei Eleitoral é muito importante. Para termos eleições em igualdade de condições, é necessário que a informação se espalhe. Em 2010, o STF julgou a proibição de trucagem e manifestações de humor nas eleições e novamente decidiu a favor da liberdade de imprensa. Nesse ponto, a linha defendida pelo Supremo ao longo dos anos é muito interessante para a aplicação no Direito Eleitoral.
ConJur — Como avalia a decisão do STF que aboliu a exigência do diploma de jornalismo para o exercício da profissão, atendendo a uma ação de autoria sua?
André de Carvalho Ramos — Existem três pontos que merecem ser destacados nessa decisão: primeiro, ela está inserida num contexto de maior participação do STF na definição do alcance dos direitos fundamentais, aquilo que inevitavelmente é o seu papel em uma democracia, assim como ocorre em outros países; o segundo ponto é a porosidade das decisões brasileiras em relação a decisões internacionais. A fundamentação do voto do ministro Gilmar Mendes, por exemplo, foi muito próxima da Opinião Consultiva número 5 da Corte Interamericana dos Direitos Humanos; o terceiro ponto é o que deve haver em uma sociedade democrática. Regulamentações que não são consideradas indispensáveis, que é o caso do diploma obrigatório de jornalismo, foram sendo derrubadas pelo Supremo Tribunal Federal.