O STF iniciou julgamento que pode tornar Jair Bolsonaro e sete aliados réus por tentativa de golpe contra o Estado. O relator Alexandre de Moraes destacou ações coordenadas do núcleo de lideranças militares e políticas no plano golpista.
Os cinco ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) tornaram, por unanimidade, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e outros sete aliados réus por tentativa de golpe de Estado. A aceitação da denúncia oferecida pela Procuradoria-Geral da República (PGR) começou ontem e se encerrou nesta quarta-feira, 26, após três sessões. Agora, é aberto um processo penal contra os acusados, em que será analisado efetivamente o mérito das acusações.
O ex-presidente e 33 aliados foram denunciados pelo procurador-geral, Paulo Gonet, pelos crimes de tentativa de golpe de Estado, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, organização criminosa, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado. A denúncia foi fatiada e, nesta primeira fase, viraram réus os oito integrantes do chamado ‘núcleo 1’, formado por Bolsonaro, ex-ministros e militares que participaram de sua gestão. São eles:
♦Jair Bolsonaro, ex-presidente da República;
♦Alexandre Ramagem, deputado federal, ex-diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e delegado da Polícia Federal;
♦Almir Garnier Santos, almirante da reserva e ex-comandante da Marinha do Brasil;
♦Anderson Torres, ex-ministro da Justiça do governo Jair Bolsonaro e ex-secretário de Segurança Pública do Distrito Federal à época dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023;
♦General Augusto Heleno, ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional e general da reserva do Exército;
♦Mauro Cid, ex-ajudante de ordens da Presidência, tenente-coronel do Exército (afastado das funções na instituição);
♦Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa, general da reserva e ex-comandante do Exército;
♦Walter Souza Braga Netto, general da reserva do Exército, ex-ministro da Defesa e da Casa Civil e candidato a vice de Bolsonaro em 2022.
No passo seguinte, os ministros da Primeira Turma vão analisar a acusação contra o segundo e terceiro núcleos. O segundo foi denunciado como responsável pelo operacional e o terceiro responsável pelo “gerenciamento de ações” golpistas.
Moraes mostra vídeo: ‘nenhuma Bíblia’
Na sessão de hoje, o ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, apresentou seu voto, acatando integralmente a denúncia da PGR. Em seguida, os outros quatro integrantes da Primeira Turma — Flávio Dino, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Cristiano Zanin — seguiram o voto do relator, acatando a denúncia por unanimidade.
Diferente das sessões de terça-feira, 25, Jair Bolsonaro não acompanhou a votação do colegiado no plenário do STF, mas no gabinete de seu filho, Flávio Bolsonaro (PL), senador pelo Rio de Janeiro.
Moraes abriu os trabalhos com a leitura de seu voto. O relator afirmou que é necessária a “comprovação da materialidade dos delitos imputados aos denunciados”, disse que isso já foi reconhecido pelo STF em 474 denúncias e avaliou que os fatos ocorrido no dia 8 de janeiro são graves.
“Salvo duas sustentações orais, reconheceram a gravidade dos fatos ocorridos no dia 8 de janeiro. […] Foi uma notícia péssima para a democracia, para as instituições, para brasileiros que acreditam num país melhor. Mas esse viés de positividade faz com que aos poucos relativizemos isso. Ninguém que lá estava estava passeando, porque tudo estava bloqueado e houve necessidade de romper as barreiras policiais. Vários policiais se insurgiram contra isso, vários são agredidos”, declarou.
Para ilustrar a materialidade dos crimes, Moraes pediu a exibição de vídeos das ações que ocorreram na data dos atos golpistas, o ministro relembrou que um policial foi retirado de seu cavalo e outra agente teve seu capacete quebrado após ser acertada com uma barra de ferro.
“É um absurdo as pessoas dizerem que não houve agressão. Nenhuma bíblia, nenhum batom é visto nesse momento. Mas a depredação ao patrimônio público, o ataque à polícia, é visto. O pedido de intervenção militar, o golpe no Congresso, as pessoas filmando e incentivando a resistência da polícia legislativa, bombas, é bom lembrarmos que tivemos tentativa de golpe de estado violentíssimo, fogo, destruição ao patrimônio público, dano qualificado”, afirmou.
Ataque às urnas e gabinete do ódio
O ministro afirmou ainda que “não há portanto nenhuma inépcia da denúncia como alegado pelas defesas” e diz que está “presente a justa causa para instauração da ação penal”. Além disso, Moraes afirmou que foi assegurado o direito à ampla defesa e que há “elementos sérios e idôneos” na denúncia da PGR.
O relator também afirmou que há ‘indícios fortes de autoria’ de Alexandre Ramagem e Bolsonaro quanto à instrução de ataque às urnas. Ele leu a mensagem enviada pelo ex-diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e delegado da Polícia Federal ao ex-presidente obtida durante a investigação.
Moraes também relembrou que a denúncia cita que Bolsonaro coordenou os integrantes de seu governo na narrativa para atacar as instituições do País e a criação do “gabinete do ódio”. O ministro ainda citou um discurso de Bolsonaro na Avenida Paulista, em setembro de 2021, em que o então presidente “após algumas ‘palavras carinhosas contra minha pessoa’, disse que não cumpriria mais ordens judiciais”.
Por fim, Moraes defendeu que a Procuradoria apontou “elementos mais do que suficientes” para o recebimento da denúncia contra Bolsonaro na íntegra.
Dino: defesas confirmaram materialidade
Flávio Dino foi o segundo a votar e afirmou que as próprias sustentações orais chamaram sua atenção e foram no sentido da materialidade da denúncia. “Não foi tanto desmaterializar, mas sim afastar autorias”, portanto, inocentar os acusados.
Outro ponto destacado pelo ministro é que, ao contrário dos que dizem que não houve tentativa de golpe pois não havia armas, foram apreendidas armas, inclusive durante o 8 de janeiro de 2023, como barras de ferro, cercas, tacos de beisebol, e canos de PVC.
Dino também lembrou que muitos dos participantes eram policiais e membros das Forças Armadas e que “há gente mais apaixonada pelas armas do que pelos cônjuges” e que alguns “dormem com suas armas, embaixo do travesseiro, na cama, ao lado da mesa de cabeceira”. Seguindo Moraes, ele votou pelo acolhimento integral da denúncia da PGR.
Terceiro a votar, o ministro Luiz Fux elogiou Moraes ao dizer que o colega “esclareceu quem fez o quê”, além de que “em hipótese alguma pode dizer que não aconteceu nada”. Fuz também citou o “caso do batom” — em que a cabeleireira Débora dos Santos pichou a estátua “A Justiça” em 8 de janeiro. Na segunda, 24, ele havia pedido vistas do processo e adiou a votação do caso.
Cármen Lúcia: “ditadura mata”
Durante seu voto, a ministra Cármen Lúcia foi direta na defesa da democracia e relembrou os riscos de quedas institucionais.
“Ditadura mata. Ditadura vive da morte, não apenas da sociedade, da democracia, mas de seres humanos de carne e osso.” – ministra Cármen Lúcia
A ministra destacou ainda que é necessário que a Justiça esteja atenta para impedir que retrocessos aconteçam, e que houve tentativa de desmonte institucional. Ela ainda declarou que os atos de 8 de janeiro não foram fatos isolados, mas o resultado de uma engrenagem construída.
“O que é preciso é desenrolar do dia 8 pra trás, para chegarmos a esta máquina que tentou desmontar a democracia. Porque isso é fato. […] Como diz Heloisa Starling, não se faz um golpe em um dia. E o golpe não acaba em uma semana, nem em um mês”, afirmou.
Por último, Cristiano Zanin também acompanhou o relator do caso, Alexandre de Moraes, e votou a favor do recebimento da denúncia contra o ex-presidente Bolsonaro e mais sete. “A Turma por uninanimidade recebeu a denúncia oferecida pela Procuradoria-Geral da República”, declarou.
O que acontece agora
Com a instauração do processo na Suprema Corte, é aberta a fase de ‘instrução processual’, quando o STF colhe as provas e depoimentos de testemunhas e acusados. Depois, é realizado um novo julgamento, no qual os ministros decidem se os envolvidos são inocentes ou culpados. Em caso de inocência, o processo é arquivado.
Se os magistrados optarem pela condenação, os réus recebem penas de forma individual, conforme o envolvimento de cada um nos crimes. A pena máxima pelos crimes imputados a Bolsonaro pela PGR pode chegar a 46 anos, conforme a legislação.
Como foi o primeiro dia
Na primeira sessão de terça-feira, Alexandre de Moraes abriu o primeiro dia afirmando que “integrantes do alto escalão do governo federal e das forças armadas formaram o núcleo crucial da “organização criminosa”, e deles “partiram as principais decisões e ações de impacto social narradas na denúncia”.
O relator citou que a consumação do crime do artigo 359-M do Código Penal (tentar depor por meio de violência ou grave ameaça o governo legitimamente constituído) ocorreu por meio de sequência de atos que visavam romper a normalidade do processo sucessório.
“Esse propósito ficou evidenciado nos ataques recorrentes ao processo eleitoral, na manipulação indevida das forças de segurança pública para interferir na escolha popular, bem como na convocação do alto comando do exército para obter apoio militar à decretação que formalizaria o golpe”, leu Moraes em seu relatório.
Após a leitura, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, teve 30 minutos para apresentar a sua acusação. Depois dele, foi a vez das defesas dos acusados falaram por 15 minutos cada, e por último, as questões preliminares passam por análises dos ministros.
Em um discurso firme, Gonet chamou a atenção para a gravidade do plano golpista e o risco que isso trouxe para a democracia do País. “Os delitos descritos na denúncia não são de ocorrência instantânea. Eles compõem uma cadeia de acontecimentos, articulados para que, por meio da força ou da sua ameaça, o presidente da República Jair Bolsonaro não deixasse o poder, ou a ele retornasse, contrariando o resultado das eleições”, declarou.
Após o procurador, foi a vez de as defesas dos acusados apresentarem suas teses perante ao colegiado. O advogado do ex-presidente Jair Bolsonaro, Celso Vilardi, disse que a denúncia da PGR contra seu cliente não tinha objeto específico e defendeu a rejeição. Ele ainda criticou a delação de Mauro Cid e negou a participação de Bolsonaro no golpe.
“Foram determinadas buscas e apreensões, foi feita a quebra de nuvens, o presidente foi investigado, buscas e apreensões. O que se achou com o presidente? Absolutamente nada. E com todo o respeito e com toda a vênia, ilustre procurador-geral da República, eu contesto essa questão do documento achado do Partido Liberal. Há, inclusive, no meu colega Paulo Bueno, uma ata notarial de que ele enviou para o presidente da República aquele documento. Então, esse documento não foi achado. Com o presidente não se achou absolutamente nada”, enfatizou o advogado de Bolsonaro.
Vilardi afirmou entender a gravidade de tudo que aconteceu no 8 de janeiro e destacou o repúdio do próprio ex-presidente com os atos. “Não é possível que se queira imputar a responsabilidade ao presidente da República o colocando como líder de uma organização criminosa quando ele não participou dessa questão do 8 de janeiro. Pelo contrário, ele a repudiou”, acrescentou ele.
Já a defesa do ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) de Bolsonaro, general Augusto Heleno, afirmou que a denúncia da trama golpista, envolvendo seu cliente, é ‘terraplanismo argumentativo’. O advogado Matheus Mayer Milanez argumentou que não há provas contundentes de que o general Heleno tenha envolvimento na tentativa de golpe de Estado.
Derrotas para as defesas quase unânimes
As defesas tentaram declarar Moraes, Dino e Zanin impedidos de atuar no caso por ausência de imparcialidade, bem como atacar a competência da 1ª Turma em julgar o caso. Todos os ministros votaram contra essas duas preliminares.
Moraes negou que o STF esteja condenando “velhinhas com a Bíblia na mão” pelos atos golpistas de 8 de janeiro e comparou o argumento usado por Bolsonaro e aliados –na tentativa de desacreditar a competência da Corte– ao terraplanismo.
Na terceira preliminar, que avaliava a possibilidade de o julgamento ser direcionado para o plenário do STF, o ministro Luiz Fux foi o único que votou a favor, mas ficou vencido. “Essa matéria não é tão pacífica assim. Essa matéria já foi mudada e remudada e voltou-se à tese originária várias vezes”, justificou.
Foram rejeitados por unanimidade todos os pedidos de nulidade do julgamento, que questionavam o procedimento investigativo que levou à denúncia enviada pela PGR ao STF e pediam a aplicação das regras do ‘juízo de garantias’.
Por fim, as defesas de Bolsonaro e Braga Netto também tentaram anular o acordo de colaboração premiada do tenente-coronel Mauro Cid. Mas esse pedido também foi rejeitado por todos os integrantes da Primeira Turma.
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Fonte: Portal Terra