É manhã do domingo, dia 11, em Laranjeiras, município de Sergipe, onde cerca de 70 rapazes com a pele pintada de preto, vestindo gorros e shorts vermelhos, dançam ao ritmo das batidas de percussão dos companheiros que batucam seus instrumentos. Percorrem as ruas desde a madrugada e só vão parar no final do dia, quando termina a festa dos Lambe Sujos X Caboclinhos, desconhecida para a maioria dos brasileiros, embora íntima de antropólogos e historiadores, que abarcam ali para estudar um pedaço escondido da alma brasileira.
O encontro dos moradores de Laranjeiras paramentados como negros e índios acontece uma vez por ano, num cortejo teatralizado em homenagem à história dos escravos da região, que lutavam por sua liberdade. Os Lambe Sujos, pintados com uma tinta negra escura, são guiados por um príncipe, e pelo rei do quilombo. Atrás deles vão os Caboclinhos, de cocares na cabeça, e a pele pintada de vermelho. Representam os índios contratados pelos donos dos engenhos de açúcar para recapturar seus escravos, prática comum naquele Brasil até 1888, quando a escravidão foi finalmente abolida.
O grupo é seguido por um público fascinado pela estética, o som e o entusiasmo desses atores por um dia, que encenam a festa inventada por negros alforriados por volta de 1860. Desde então, o festejo se repete no município de 27.000 habitantes, no segundo semestre do ano. De uns anos para cá, todo segundo domingo de outubro, sempre perto do aniversário da independência de Sergipe, que até 1820 vivia sob a tutela do Estado da Bahia.
O Lambe Sujos X Caboclinhos, ou apenas Lambe Sujos, como é mais conhecida, poderia ser mais uma festa regional de uma pequena cidade em qualquer lugar do Brasil. Mas a quantidade de informações e sutilezas concentradas nessa narrativa folclórica é tão rica que já inspirou dezenas de textos e livros acadêmicos. “Estamos retratando a história da cultura brasileira, de um povo humilde do Brasil. A senhora não encontra isto nas universidades. As universidades é que vem aqui beber da fonte do mestre”, diz a esta repórter o Mestre Zé Rolinha, o rei dos Lambe Sujos há 30 anos, e considerado o dono da festa.
Quando criança, ele também brincava, levado pelo pai e pelo tio que integravam o grupo. O ouvido fácil para aprender a tocar instrumentos, além de todas as histórias e lendas que cercam o folguedo, foram enredando Zé Rolinha. Os mais velhos viram nele o candidato natural para assumir o posto de monarca, papel que exerce até hoje com galhardia. Em uma casa modesta, mas de coração gigante, Zé Rolinha vive um entra e sai de pessoas na véspera do cortejo. É ele quem cuida da organização, pede apoio ao poder público, e se articula com seus pares para manter a tradição cultural e a história “do meu município, do meu Sergipe e do meu Nordeste brasileiro”.
Laranjeiras, a 20 minutos da capital, Aracaju, foi uma das mais prósperas cidades do país nos tempos da escravidão, graças à riqueza proporcionada pela cana de açúcar plantada ali. Chegou a ser candidata a capital da então província de Sergipe, numa época em que as famílias brancas endinheiradas tinham acesso ao que havia de melhor do exterior, vindo de navio pelo rio Cotinguiba. Mas era o trabalho braçal de milhares de escravos que sustentava os engenhos. A ânsia pela liberdade criou movimentos de quilombos, negros fugitivos que formaram povoados ali, vivos até hoje através de seus descendentes. “A festa encena o que Laranjeiras vivenciou historicamente”, afirma Evandro Bispo, um dos organizadores do folguedo, que teria sido criado antes da abolição, embora só existam registros oficiais da festa a partir de 1930. Bispo é Lambe Sujo numa parte do dia, e pai Juá na outra, quando sai fantasiado como tal de um terreiro de candomblé para ser o guia espiritual dos negros diante da batalha que vão encenar ao final da tarde contra os Caboclos. É o ponto alto do folguedo.
Todos querem ser pretos no dia da festa, começando na madrugada de domingo para a alvorada festiva. O bloco de negros e índios vai crescendo com o avanço das horas, seguidos por moradores e turistas, que improvisam vestes vermelhas para se parecer aos Lambe Sujos, ainda que eles sejam vencidos no final da festa pelos Caboclinhos. Uma derrota vitoriosa, diga-se de passagem. “Nunca vi um rei ser vencido tão altaneiro como o Rei dos Lambe Sujos que sai de cabeça erguida, como se não houvesse perdido a batalha”, brinca a antropóloga Beatriz Góis Dantas, doutora pela Universidade Federal de Sergipe, que se aprofundou nos estudos dessa festa entre 1969 e 1990.
A derrota faz parte da narrativa, segundo os guardiões da tradição, porque quando a festa foi criada pelos negros alforriados as autoridades de então teriam combinado assim. Se por ventura os Lambe Sujos fossem vitoriosos poderiam estimular os negros que ainda viviam sob o manto da escravidão a se revoltarem.
Mas a resistência e a coragem por lutar pela liberdade é dos negros, e não dos caboclos, que estão a mando dos brancos, estes quase anti-heróis nessa festa. Samba, nego, branco não vem cá. Se vier pau há de levar, diz um dos cânticos entoados pelos protagonistas do folguedo. “Todo mundo é negro aqui”, dizia José Luiz, na festa deste ano, com o rosto pintado de preto muito preto, que destacava seus olhos azuis. Os braços continuavam brancos. “A festa é para lembrar a escravidão, a força do negro, tudo é em homenagem a eles”, explica. Luiz, que contemplava de longe o cortejo, ao lado de uma caixa de isopor, com água e cerveja para refrescar os visitantes que estavam sob o sol do meio dia nordestino.
Os Lambe Sujos lembram, de cara, o saci-pererê, personagem imortalizado por Monteiro Lobato no século XX. Alguns fumam cachimbo e outros chupam chupeta. Cativam de imediato com seus pandeiros, ganzás e tambores, que se combinam num ritmo afro contagiante, música “guerreira e agressiva”, como define Bispo, que toca cuíca.
Várias histórias alimentam, ainda, a carapuça vermelha da cabeça. Uma delas é que alguns escravos fugitivos, no passado, se fingiam mesmo de saci e pulavam num pé só para assustar os que os avistassem na calada da noite. Mestre Zé Rolinha diz que não tem nada disso. “Os mais antigos eu não sei. E se soubesse, também não diria. As coisas internas do grupo não contamos”, diz ele, fazendo mistério.
Há quem veja no gorro uma alusão a outros elementos subjetivos. “Me pergunto se o formato de toca não tem a ver com a Revolução Francesa, que tinha como símbolo o barrete frígio. Como a festa de Laranjeiras é um canto de liberdade, não seria impossível…”, diz a professora Beatriz. A cultura europeia tinha forte influência em Laranjeiras em seus tempos áureos.“Havia senhores de engenho que pagavam aulas aos escravos para que eles servissem as visitas falando em francês”, conta Evandro Bispo.
Um personagem controverso se destaca neste teatro a céu aberto: o feitor que carrega um chicote de verdade, e distribui chibatadas reais a quem se descuida e desobedece as ordens dos mestres do grupo para o cortejo. Ele leva um clima de tensão permanente para o evento. Quem não toma cuidado sai com uma marca vermelha no corpo. Muitos rapazes, embalados pela bebida e a disposição de testar seus limites, provocam o feitor com o único intuito de serem chicoteados, numa aparente competição masculina de resistência à dor. O efeito dessa cena é chocante. Mas compõe um certo caos que, de alguma maneira, faz sentido nessa festa. O som do chicote transporta os visitantes para os castigos corporais sofridos pelos principais homenageados da festa: os ancestrais negros que sentiram na pele a escravidão.
Tinta preta e mel de cabaú na pele
A cor dos Lambe Sujos é uma atração a parte. Um preto escuro, e com um brilho que realça ainda mais o tom de pele. Para chegar a ele, a pele é revestida primeiro com tinta em pó. Em seguida, o corpo é coberto com mel de cabaú, derivado da cana de açúcar, que fornece o brilho. Fernando, de 21 anos, cego desde os três, conta que acompanha a festa desde criança. Uma das sensações que o conectam a ela é o gosto do mel.
Mais do que um item para valorizar o tom da pele, o mel de cabaú reproduz um costume real dos tempos imperiais. “O mel deixa o corpo grudento e era utilizado pelos escravos fugitivos para colar folhas ao corpo e servir de camuflagem contra seus perseguidores, segundo os relatos orais dos moradores mais antigos da cidade”, diz Evandro Bispo.
Por três reais, interessados em imitar os ancestrais de Laranjeiras faziam fila, no último dia 11, na calçada da casa de um dos moradores que se outorgou a função de lambuzar quem estava disposto a brincar fantasiado. Quem não se atrevia a ficar pintado da cabeça aos pés, era marcado do mesmo jeito na hora da melação. Uma mão no rosto, um abraço repentino. E todos na cidade de repente estão manchados de preto.
Até os anos 90 a festa era mantida quase marginalmente, celebrada na periferia da cidade. Em 1969, quando Beatriz começou a estudá-la, não mais que duas dezenas de brincantes participavam do folguedo, com um público mais modesto. “Ela parece ganhar um novo significado diante da valorização da cultura negra das últimas décadas”, diz ela, que escreveu diversos livros sobre o evento.
De fato, a festa cresceu, ganhou a cidade toda, o apoio da Igreja católica local e dos terreiros de candomblé, incluídos no seu enredo, abençoando os personagens em alguns atos desta ópera popular. Há quem reclame que o poder público apoia pouco, e só aparece quando tudo está pronto para tirar uma casquinha. Os organizadores se preocupam, ainda, com o aumento do público nos últimos tempos, que por vezes confunde a tradição com uma festa de carnaval. Não importa. A festa fica maior a cada dia porque o enredo é cativante, a música é alegria e os elementos tão brasileiros despertam empatia imediata. Laranjeiras é um pedaço da alma do Brasil. No ano que vem tem mais.
Fonte: El País