Clara Dias*
Além de forte característica cultural da cidade, a criação se torna fonte de renda, ação terapêutica e oportunidade de inclusão para mulheres do município
Quando fala de sua arte, Simone fala de sonho. Após dedicar anos da vida corrida ao comércio de outra pessoa, doando tempo, esforço e vontade de crescer, a artesã Simone Gonçalves viu a perspectiva de avanço se perder com o fechamento da empresa em que trabalhava. Foi a frustração que a impulsionou a dar os primeiros passos rumo ao destino que sempre desejou e, durante a pandemia, começou a fazer os primeiros pontos no crochê. Assim como para tantas mulheres, o artesanato acolheu seus anseios e dores, proporcionando o reconhecimento e o complemento de renda para o sustento de sua família.
Ao tecer os caminhos do futuro pelas mãos das mulheres, São Cristóvão se destaca pela riqueza histórica e cultural que perdura por gerações de artesãs da cidade. No Brasil, os números ilustram um cenário similar: 77% dos profissionais da área são mulheres, que protagonizam uma amplitude de 8,5 milhões de artesãos. De acordo com a Agência Sebrae, o trabalho desses artistas gera cerca de R$102 bilhões ao ano, equivalente a 3% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional.
Em Sergipe, o Sistema de Informações Cadastrais do Artesanato Brasileiro (Sicab) indica que mais de 5,3 mil pessoas são registradas como produtoras de artesanato, sendo 80% delas mulheres, conforme o Mapa do Artesanato Brasileiro, produzido pelo Programa do Artesanato Brasileiro (PAB). Já em São Cristóvão, os registros são apresentados em menor escala: apenas 63 artesãos são cadastrados nos serviços da Prefeitura de São Cristóvão, mas 85 participam continuamente das ações públicas e compõem as belezas mostradas aos milhares de turistas que transitam pelas ruas históricas do município, quarto mais antigo do país e sede da Praça São Francisco, Patrimônio Cultural da Humanidade e chancelada pela Unesco há 14 anos, e palco do trabalho de dezenas de artistas e artesãos.
Segundo o levantamento do Museu de Arte Sacra de São Cristóvão, 14,5 mil visitantes passaram pelo Centro Histórico da cidade em 2024. No entanto, só no Festival de Artes de São Cristóvão (Fasc), evento multiartístico que acontece anualmente, é estimada a recepção de 50 mil pessoas por dia. São eventos como este que agregam à movimentação turística da região, o que estimula ainda mais a procura pela arte e tradição locais.
Simone, que hoje acredita no seu potencial criativo e produtivo, mantém-se atenta a esse fluxo artístico. “Eu tinha um sonho guardado num bauzinho, que era fazer minhas próprias peças, criar minhas ideias, ser uma artesã participativa, ter meu próprio recurso, ser funcionária de mim mesma. Fiquei muito triste e abalada quando a empresa que trabalhava fechou, mas começaram a surgir os cursos de formação para o Festival de Artes em 2018. Foi quando eu disse: ‘olha, estou desempregada mesmo, em casa, então vou aproveitar esses cursos’”, compartilha.
Por meio das diversas formações disponibilizadas por instituições públicas, com parcerias da Prefeitura e outras entidades, dezenas de artesãos conseguem a oportunidade de, assim como Simone, estruturar seu ideário profissional. Tocada pela fala de um dos professores, que a incentivou a deixar os traumas para trás e seguir em frente com seus objetivos, hoje se dedica não só ao fazer manual, mas também a movimentar iniciativas de outras mulheres para, juntas, lutarem por reconhecimento e inclusão social.
“Me considero artesã desde muito jovem, quando eu via o pessoal fazendo crochê. Eu aprendi crochê por observação, depois eu fui me aperfeiçoando. Hoje eu sou mais do que artesã. Sou artesã, artista visual, articuladora social, e também sou membra e diretora da associação de artesãos “Mãos que Pensam”, pioneira na cidade”, orgulha-se Simone.
Coletividade como força motriz da economia criativa
O artesanato sancristovense se desenvolve por meio de diversas formas de organização, sejam públicas ou privadas, proporcionando uma alternativa de renda que possibilita autonomia financeira e alimenta os objetivos de crescimento das produtoras do município. Desde cedo, elas perceberam que a união de forças e a organização da coletividade são agentes facilitadores tanto para demandar a garantia de políticas públicas quanto para pleitear espaços de produção, comércio e visibilidade para seu trabalho.
Por isso, em 2019, um grupo de artesãs de São Cristóvão se reuniu de forma independente para criar a Associação “Mãos que Pensam”, dirigida por Simone Gonçalves. Com seis anos de atuação e quatro de registro oficial, a associação conta com 17 associadas e apoia outros diversos artesãos que exibem suas peças no espaço financiado com recursos próprios. “Começamos com 32 mulheres, mas algumas se foram na pandemia. Foi difícil, mas a gente foi insistindo, persistindo. Cada dia, a gente diz que matou um leão e deixou o outro para o dia seguinte, para poder acreditar”, desabafa a artesã.
Na casa das “Mãos que Pensam”, localizada na Praça Getúlio Vargas, conhecida como Praça da Matriz, é possível encontrar uma vastidão de produtos à venda, incluindo as obras feitas pelas mãos das associadas e de outros artesãos de todo o estado. São diversos tipos bordados, crochês, esculturas, peças de decoração, mandalas, colares e acessórios feitos com retalhos de malha, além de roupas reaproveitadas e redesenhadas com a técnica de upcycling.
Também são vendidos outros produtos, como mel natural e itens sustentáveis com mensagens de conscientização ambiental. As associadas ainda aceitam encomendas em maior escala, como a produção de camisetas e ecobags para eventos. A associação tem o apoio da Economia Solidária, ação de fomento do Ministério do Trabalho e Emprego, e já participou de feiras e formações em Sergipe e Bahia, fortalecendo seu trabalho coletivo e a marca própria.
No local, as mulheres contam com máquinas de costura e materiais para fazerem suas peças, além de frequentemente terem oferta de oficinas criativas e profissionalizantes. “Quero muito que esse grupo siga adiante com todas as oportunidades que estão por vir. Porque a gente só cresce juntas. Sozinhas podemos até ter um crescimento, mas juntas vamos além, porque estamos ajudando umas às outras. O retorno vem com o tempo”, afirma Simone.
Ela não é a única. Como uma das fundadoras da associação, Maria de Fátima Sousa, artesã e rezadeira de 73 anos, compartilha seus conhecimentos culturais e ancestrais com as colegas, formando novas gerações de artesãos interessados em agregar vivências. Diplomada em “Saberes Populares” pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) e intitulada Mestra da Cultura Popular de São Cristóvão pela Fundação Municipal de Cultura e Turismo João Bebe Água (Fumctur), já ministrou e produziu diversas oficinas abertas ao público pela associação, promovendo continuamente o intercâmbio cultural entre municípios e estados.
“Já fizemos oficinas com palha de ouricuri, trazendo artesãs de Japaratuba e Pirambu, onde tem associações que trabalham com esse material. Em junho deste ano, vamos até Japaratuba para mais uma oficina. Aqui mesmo temos artesãs que fazem um trabalho lindo com palha e luminárias, por exemplo”, detalha Dona Fátima.
O resgate e a valorização do artesanato continuam a inspirar a mestra para exercer um papel relevante na cultura do município. Para ela, que é descendente da nação indígena Pankararu, de Pernambuco, além de perpetuar os saberes artísticos, espirituais e curativos que carrega consigo, o artesanato é uma fonte de renda extra e um propulsor de qualidade de vida. “Quando a gente faz o que ama, isso aparece nas peças. Um espaço como a associação resgata, valoriza e dá força ao trabalho. E, quando estamos em grupo, somos mais fortes. Mostramos o que nossa cidade tem, o que as artesãs de São Cristóvão produzem. Isso é essencial”, reforça.
Apesar de unido e fortalecido, o grupo, por ser formado majoritariamente por pessoas idosas, ainda carece de letramento digital para a divulgação de seu trabalho, assim como precisa de apoio governamental e financiamento para viabilizar projetos e atender à demanda de feiras e eventos em outros estados. Com o incentivo de editais de fomento cultural e ações estruturais de órgãos públicos, iniciativas como “Mãos que Pensam” e várias outras organizações ganham força para conquistar o mundo.
Políticas públicas de incentivo e acolhimento
Para que o legado histórico e cultural do artesanato de São Cristóvão continue a florescer entre as pedras tombadas da cidade, faz-se essencial a garantia do apoio financeiro, estrutural e profissionalizante promovido por meio de políticas públicas, sejam projetos municipais voltados à cultura local, leis de incentivo federais ou parcerias com instituições mistas. Esses instrumentos garantem formação, estrutura e oportunidades de renda para os artesãos, permitindo que tradição e inovação caminhem juntas para o desenvolvimento da comunidade.
Um dos equipamentos que mais estimulam a produção artesanal do município é a Casa da Costura Dona Zil, espaço vinculado à Secretaria Municipal de Assistência Social (Semas) de São Cristóvão. Criada em 2018 e reaberta em 2021 após a paralisação causada pela pandemia de Covid-19, a Casa da Costura se consolidou como um ponto de aprendizado e capacitação profissional, oferecendo cursos gratuitos, iniciais e avançados, de corte e costura, crochê, bordado e diversas técnicas de manipulação de tecidos para residentes de São Cristóvão de qualquer idade ou gênero, a partir de 16 anos, seja do Centro Histórico, da macroárea do Grande Rosa Elze ou da Zona Rural. No caso dos moradores mais distantes do Centro Histórico, a Semas assegura o transporte sem custo para que a comunidade possa atender às aulas.
iniciativa foi condecorada em 2024 com o Selo ODS por estar alinhada com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU), uma agenda global que propõe soluções para diversos problemas enfrentados pela humanidade, como a pobreza extrema, a fome, o acesso à saúde de qualidade, a educação inclusiva, a equidade de gênero, a preservação ambiental e a resposta às mudanças climáticas. Essa agenda é estruturada em 17 grandes objetivos, detalhados em 169 metas específicas, acompanhadas de indicadores que possibilitam medir e avaliar os avanços ao longo do tempo.
O prêmio mostrou que a Casa da Costura não só estimula a geração de renda, atingindo o ODS 8 de trabalho decente e crescimento econômico, mas também promove o cuidado ambiental, presente no ODS 12 de consumo e produção responsáveis. Isso ocorre porque, entre a produção das mais de 360 pessoas capacitadas pelos cursos da casa, que mantêm uma parceria de ensino com o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), nenhum pedaço de tecido é desperdiçado no processo. Com os menores retalhos, por exemplo, as costureiras fazem elásticos de cabelo, turbantes e até sandálias decoradas para vender, mostrando que a formação profissional também envolve educação ambiental, que aborda os motivos de reutilizar e preservar cada pedaço dos materiais.
Sandra Rodrigues, professora, fundadora e responsável pela Casa da Costura Dona Zil, relata que o equipamento foi criado para acolher pessoas em situação de vulnerabilidade, especialmente mulheres desempregadas. A partir disso, cada conquista tem comprovado a relevância do trabalho realizado e, para ela, é gratificante ver esse esforço abrir novos horizontes.
“Esse trabalho tem sido muito positivo. As mulheres são apaixonadas pelo que fazem, vendem bem e cada vez mais ganham confiança e independência. A maioria é dona de casa, mas agora também são artesãs com uma fonte de renda. Quanto mais produzem, mais vendem, e todas vendem juntas. O grupo se fortaleceu e se uniu ainda mais em torno desse objetivo: fazer da costura um meio de sustento digno”, afirma a professora.
Foi por meio de ações da Casa da Costura que artesãs do município, uma delas sendo a diretora da associação “Mãos que Pensam”, Simone Gonçalves, expuseram paineis bordados com temáticas sociais e ambientais na 18ª edição da mostra “Art al Vent”, no município de Gata de Gorgos, na Espanha. Simone expôs uma obra individual e outra em conjunto com a Coletiva Crochê-te-ando, representando São Cristóvão como a única cidade brasileira a fazer parte do evento.
Com a crescente evolução das produções, a demanda comercial das integrantes do projeto culminou na inauguração da Lojinha da Casa da Costura Dona Zil, em fevereiro de 2022. Localizada na Praça São Francisco, a loja oferece de forma gratuita estrutura e mobiliário adequados para que as artesãs vinculadas à Casa da Costura possam vender os itens produzidos em um ponto turístico bem localizado.
Para Cleomar Gondim, uma das crocheteiras expositoras no local, é muito importante ter a oportunidade de um espaço como esse, que amplia o acesso da clientela para além das redes sociais. Ela iniciou a arte do crochê nos cursos da Casa da Costura, transformando sua inexperiência em excelência na criação de bolsas, brincos e colares. Como também participou do curso de bordado, ainda inclui o serviço entre seu catálogo de vendas.
“Ao ter esse espaço, oferecido pela Casa da Costura, fica mais fácil, mais viável. Porque a cidade sempre está recebendo turistas. Então, fica mais viável vender, e até para a gente conseguir mais renda para aumentar a produção e seguir criando cada vez mais”, defende a crocheteira. Com ela, 14 artesãs integram o elenco da Lojinha da Casa da Costura, que continua a receber itens exclusivos desenvolvidos pelo projeto.
Outro espaço fundamental para o aquecimento da produção e venda de artesanato na Cidade Mãe de Sergipe é a Casa dos Saberes e Fazeres, equipamento que integra a Fumctur. O espaço foi pensado para acolher de maneira contínua os artesãos que já comercializavam seus trabalhos na Feira São Criativos, evento voltado para o fomento do artesanato local, e as tradicionais bonequeiras do município. Atualmente, 28 artistas vendem diversos tipos de materiais como bonecas de pano, pinturas, esculturas, roupas, acessórios, cordéis e comidas típicas.
Uma delas é Lourdes de Jesus, que costura bonecas temáticas há 15 anos. A sua participação na Casa dos Saberes e Fazeres proporcionou para ela um complemento financeiro, bem como um momento de bem estar emocional e socialização com outros artesãos, sendo exemplo de como o espaço oferece oportunidade de geração de renda, especialmente para mulheres que estavam fora do mercado de trabalho.
“Eu fico feliz quando novas pessoas, principalmente jovens, vêm visitar e aprender sobre a casa. Ensinamos os conhecimentos para os jovens das escolas daqui, pois muitos não conhecem as danças tradicionais, porque muitos jovens que moram aqui e não conhecem a dança, não sabem nada da história da dança. E as pessoas que vêm aqui olham, mas se a gente não fizer uma visita guiada, eles saem sem saber de nada. Então, quando chegam, realizamos essa visita guiada”, conta Lourdes.
Em 2024 e 2025, a Casa dos Saberes e Fazeres, localizada na R. Cel. Erondino Prado, no Centro de São Cristóvão, recebeu 4.435 visitantes, com uma média mensal de 369 clientes. Esse fluxo é animador para os quase 30 artistas que expõem no ponto turístico, incentivando ainda mais a geração de renda dos produtores locais.
Diferente da Casa da Costura, que tem o intuito majoritário de profissionalizar produtores iniciantes, na Casa dos Saberes e Fazeres, os artesãos já chegam com o conhecimento adquirido. Foi o caso de Lourdes, que, quando se uniu à instituição para aprender a fazer bonecas de pano, já sabia fazer crochê e bordado, e já era formada em tapeçaria. “Fiz muitos cursos. Tenho várias apostilas em casa. Todo tipo de curso que aparecia, eu fazia”, aponta.
Além dos espaços colaborativos e formadores, as leis federais de incentivo cultural têm um papel fundamental para a expansão e profissionalização do artesanato e outras formas de arte na cidade. Desde 2022, 235 artistas, artesãos e espaços de cultura foram contemplados por editais municipais das Leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo, organizados pela Fumctur.
Conforme dados fornecidos por Neto Astério, assessor técnico da Fumctur e coordenador dos editais de fomento à cultura, a primeira edição da Lei Aldir Blanc, em 2022, aprovou 80 projetos, financiando-os com uma verba de mais de R$280 mil. Já os editais referentes à Lei Paulo Gustavo, de 2023, movimentaram mais de R$840 mil. Após o lançamento da Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (PNAB), mais R$820 mil foram distribuídos entre projetos, mestres e espaços de cultura.
Ao todo, 235 propostas foram contempladas e viabilizadas por aproximadamente R$2 milhões, que oportunizaram não só a existência desses trabalhos, mas a resistência e sustento dos artistas e artesãos no processo de criação, aquecendo ainda outras áreas prestadoras de serviço.
De olho nas oportunidades que as tramas de seus fios reúnem, Simone Gonçalves teve cinco projetos selecionados pelos diversos editais publicados entre 2022 e 2025, e, conectada a parcerias, essa verba abriu portas para a montagem de seu portfólio, abertura do MEI e a ministração de oficinas na Casa da Costura.
“Comecei a fazer meu portfólio, comecei a escrever. Hoje já ganhei cinco projetos como artesã, como escritora. Tenho duas obras fora do país, que foram para a Espanha. Tenho várias experiências e sempre digo às pessoas que acreditem em si. Depois da pandemia, fiquei com medo, mas consegui. Eu costumo dizer que fui dando passinhos pequenininhos, mas construindo um prédio forte e firme. Hoje, meu portfólio é bem forte, cheio de vivências, de história de vida e de fortalecimento”, comemora a artesã.
Empreendedorismo que transforma e ultrapassa barreiras
O chão se abriu quando Ridaci Evangelista perdeu a mãe. Um ano depois, a vida do pai também findou e, para aplacar a dor da perda, a educadora física pediu um sinal a Deus para seguir novos caminhos. O que era fim, virou o começo de um novo rumo. Ao avistar o primeiro retalho de couro, encantou-se pelo tecer das bolsas, dos vestidos e dos acessórios. Assim, o que brotou do temor da morte, transformou-se em arte reconhecida no estado e no país.
Com disciplina e capacitação, ela elevou suas criações a uma referência de negócio consolidado. Hoje, com a marca autoral Fijô, batizada com as iniciais dos pais, Fidelina e José, é reconhecida como uma das principais artesãs de São Cristóvão. “Eu costumo dizer que a arte transforma. Foi após o falecimento da minha mãe que eu comecei a fazer bolsas, acessórios, e comecei a agregar. Só que, com um ano e cinco meses, eu perdi meu pai. Eu estava levantando, tentando me erguer, mas a arte já tinha me transformado. Aí eu continuei e comecei a agregar: vem o couro, o tecido, cipó, madeira, bordado, crochê. Eu agrego tudo em um trabalho só”, relata, mostrando a importância da consolidação de estilo.
Assim como Ridaci, o empreendedorismo feminino no Brasil caminha em frente mesmo em solo desigual. Segundo o Panorama do Empreendedorismo Feminino no Brasil, desenvolvido em 2024 em parceria pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), as mulheres enfrentam barreiras desde a primeira ideia de empreender, cruzando desigualdades significativas em relação a gênero e raça. Ainda ganham 21% a menos que os homens, têm menos acesso a crédito e dedicam menos tempo aos negócios por conta da sobrecarga de uma jornada dupla ou tripla de trabalho, uma vez que, enquanto empreendem, também cuidam da casa e da família.
A jornada é ainda mais pesada para as mulheres negras: 59% delas conseguem dedicar menos de 40 horas semanais aos seus negócios, frente a 49% de pele branca. Apesar dos obstáculos, elas avançam com planejamento e coletividade. Apenas 17% das presidências de empresas são ocupadas por mulheres, mas 85% das empreendedoras têm negócios formalizados e 90% delas se preocupam em adotar medidas sustentáveis em suas iniciativas.
Os números mostram vulnerabilidades, mas comprovam a força, o comprometimento e o desejo de ocupar espaços. O incentivo ao empreendedorismo entre mulheres já se mostrou uma estratégia eficaz para gerar autonomia, movimentar a economia local e enfrentar desigualdades de gênero. Com acesso à informação, apoio e espaço para empreender, mulheres ampliam sua participação nas decisões econômicas, conquistam independência financeira e fortalecem seu papel na sociedade. Além disso, negócios liderados por mulheres costumam trazer olhares diversos e soluções criativas, o que contribui para a inovação e o desenvolvimento sustentável do território.
Com as medidas profissionalizantes tomadas desde o primeiro passo, Ridaci alcançou a participação da Feira Nacional de Negócios de Artesanato (Fenearte), maior feira de artesanato da América Latina, e viu sua marca circular por várias partes do Brasil. “Quando eu criei a Fijô, minha primeira meta era fazer com que a população de São Cristóvão usasse a minha marca, soubesse que aqui existia uma artesã. Hoje, uma parte da população de São Cristóvão já usa minha roupa. Sergipe já usa minha roupa”, destacou a artesã, que é procurada por artistas e profissionais para serem vestidos com exclusividade em momentos solenes e de grande exposição, mostrando que o crescimento veio não só com muito trabalho e talento, mas também com planejamento.
Nos últimos anos, o artesanato passou a ocupar espaço como atividade econômica relevante e com alta demanda da sociedade, ressaltando, mais uma vez, o destaque para as mulheres. Para isso, aquelas que almejam se profissionalizar contam com o apoio do governo federal por meio da iniciativa “Trilha do Artesão Empreendedor”. A ação é fruto de uma parceria entre o Sebrae e o Programa do Artesanato Brasileiro, vinculado à Secretaria Especial de Produtividade e Competitividade do Ministério da Economia. Disponível de forma on-line e gratuita, a plataforma oferece uma série de conteúdos voltados para o fortalecimento do artesanato brasileiro, com orientações práticas sobre empreendedorismo, marketing digital, fidelização de clientes e acesso consciente ao microcrédito, e todos os cursos oferecidos contam com certificação digital com verificação de autenticidade.
Contudo, mesmo que as mulheres sejam as que mais se especializaram digitalmente da pandemia para cá, dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que 6,4 milhões dos domicílios brasileiros não possuem acesso à internet e apenas 11% dos usuários de internet totalmente conectados pertencem às classes D e E.
Por isso, é importante que essas pessoas tenham acesso a capacitações em seus territórios. Para que todo o elenco de artistas e artesãos do município tenha acesso a caminhos de profissionalização, a Prefeitura de São Cristóvão, por meio da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e do Trabalho (Semdet), investiu em capacitação, participação em feiras e apoio ao empreendedorismo. Segundo informações da Semdet, cerca de 30 cursos e oficinas voltadas ao artesanato foram oferecidos apenas no último ano.
Além de espaços de formação, um dos principais espaços de incentivo ao artesanato local é a Feira São Criativos, criada em 2017 com o intuito de valorizar e divulgar o artesanato e a cultura local. Coordenada por Neusa Malheiros, diretora do Trabalho da Semdet, a feira passou por diferentes formatos ao longo dos anos, ofertando nove edições em 2023 e duas em 2024. Agora, o projeto passa por uma reformulação para melhor atender a integração entre os artesãos e o público interessado.
“A Feira São Criativos, no início, tinha exatamente a proposta de reunir o artesanato e a gastronomia típica local. Mas ela foi se transformando e adequando à demanda da cidade. Passou a ter artesanato, mas também muito mais trabalhos manuais”, explica Neusa. A nova proposta busca mais objetividade e impacto nos resultados financeiros dos contribuintes.
A projeção é que a próxima edição da feira aconteça na 40ª edição do Festival de Artes de São Cristóvão, que é um Bem de Interesse Cultural de Sergipe. No evento, que acontecerá em novembro e reúne há 53 anos uma ampla diversidade de manifestações artísticas, como música, literatura, dança, teatro, artes visuais e cinema, tanto artesãos como público terão quatro dias de imersão cultural e artística na cidade histórica, com investimento de cerca de R$3 milhões por edição, levando a cultura local a alçar voos cada vez mais altos.
Ridaci é presença tradicional nos espaços artísticos do festival e, para quem quer seguir no caminho do artesanato como profissão, ela traça em palavras a marcação do caminho guiado pelas linhas: “O maior diferencial para fidelizar o público é o acolhimento. Além disso, é necessário ter disciplina, inovação e estar sempre se reciclando. Para mim, são três fatores essenciais. A disciplina faz toda a diferença em tudo que você vai fazer. E o amor pelo que você faz também”.
A história dela mostra que o artesanato, aliado à capacitação e ao empreendedorismo, pode ser um trabalho profissional, sustentável e reconhecido, como também um refúgio de cura, acolhimento e identificação. É com apoio, políticas públicas e investimento em formação empreendedora que as artesãs da Cidade Mãe de Sergipe ocupam os lugares que almejam e, assim, quando Ridacis, Fátimas, Lourdes, Cleomares e Simones falam de sua arte, o sonho ainda brilha em seus olhos, mas, como tantas outras mulheres, hoje falam de realidade.
Por Clara Dias*
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