por Rodolfo Lucena/ blogfolha.uol.com.br
Teve água gelada em cada um dos postos de hidratação, rigorosamente instalados a cada cinco quilômetros até o mais amargo fim da corrida de 25 km em Sergipe. Considerando que a prova foi realizada na canícula do nordeste brasileiro, basta dizer isso para que fique atestada a ótima qualidade da organização do evento.
Estou falando da corrida que marca o aniversário da cidade de Aracaju. A capital sergipana completou 158 anos e a prova chegou à sua 30ª edição. Pelos relatos que ouvi, nem sempre a corrida transcorreu tão bem quanto neste ano, mas o que posso atestar é que ela deu um banho de organização em provas mais ricas e poderosas de São Paulo e do Rio.
A Corrida Cidade de Aracaju estava nos meus planos havia quase dez anos, mas nunca deu certo. Uma das dificuldades para o turista eventual é que a prova acontece no dia do aniversário da cidade, que é feriado local. Ou seja, apenas a cada cinco anos, mais ou menos, acontece no final de semana. Além disso, os preços de passagem aérea para o Nordeste sempre foram muito altos; continuam, mas, se o viajante consegue se programar com bastante antecedência, encontra valores razoáveis,q eu podem ser pagos em várias prestações.
Neste ano, deu tudo certo: incluí a prova no meu programa de treinamento para a maratona que realizaria no primeiro semestre, salvei alguns dias para a viagem e ainda consegui ótimo preço na passagem e nas diárias do hotel que escolhi.
Meu medo era o clima, a canícula, o ventão quente incendiando os pulmões, derretendo o cérebro e aposentando os músculos. Quando se abriu a porta do avião, percebi que estava perdido: um bafão invadiu a aeronave; ao desembarcar, cada passo gerava suor em bicas.
Estávamos no ponto mais quente do dia, às 14h. Não dei nem tempo para o corpo reclamar e fui para a praia, antes de mesmo de comer qualquer coisa, para fazer o treino de apresentação: Rodolfo, aqui Aracaju; Aracaju, aqui Rodolfo. Muito prazer.
Foram quarenta minutos de trote, seis quilômetros de mar, areia, asfalto e alguma brisa.
O ventinho marinho me deu alívio; imaginei que, na estrada, poderia facilitar um pouco a vida do corredor. Depois lembrei que a prova vem do sertão, não tem essa de brisa do mar salgado do Brasil; é sol na moleira o tempo todo.
O mar despertou lembranças da pátria gaúcha. Com ondas constantes, revolve as areias do fundo e dá às águas aquele tom amarronzado, que alguns conhecem por cor-de-burro-quando-foge e outros xingam de sujeira, que é característico do mar do Rio Grande do Sul. A praia larga, com alguma área de terra firme, boa para correr, também se assemelha às gaudérias. O mar, porém, é quente, convidativo, ainda que de águas revoltas e perigosas. É um cobertor, não a faca gelada das ondas gaúchas.
Cheguei com antecedência à cidade, para fazer alguns passeios tidos como obrigatórios. Agora que os fiz, recomendo: são imprescindíveis.
Para mim, o mais emocionante foi conhecer o delta do rio São Francisco, o encontro do Rio da Integração Nacional Com o mar. Em alguns pontos, o Velho Chico chega a ter 1.500 metros. É água para mais de metro; lá longe estão as ondas, cá em volta a água doce-salgada vai em correnteza que, quando se revolta, tudo engole (foto abaixo). É um Brasilzão que não tem tamanho, dá até um aperto no peito, a visão se turva, o vivente fica abestado.
Menos monumental, o outro passeio exige muita paciência, pois a viagem é longa, mas o prêmio é estupendo: as gargantas do rio Xingó (foto abaixo). Os recortes nas montanhas que margeiam o rio parecem artes de hábeis fiandeiras; as águas são verdes, traiçoeiras como olhar de cobra. E há que ficar atento ao caminho, na ida, pois se mergulha no sertão, veem-se imagens e cenas do Brasil profundo. Nesse passeio, trajeto e destino são partes de uma mesma experiência de descoberta.
Feito o imprescindível, é hora de comer e descansar, esperando a hora da largada. Dei-me tempo de sombra, água fresca e comida boa: carne seca assada com pirão de aipim, moqueca de lagosta, penne al mare e por aí vai.
A corrida começa às quatro da tarde, na histórica cidade de São Cristóvão, primeira capital de Sergipe. Fundada em primeiro de janeiro de 1590, ela se apresenta como a quarta cidade mais antiga do país. Fiquei procurando as três anteriores e encontrei uma barafunda de informações. Em várias listas das dez cidades mais antigas do país, o município sergipano nem sequer aparece. Diversos textos que li afirmam que, entre os historiadores, não há consenso sobre esse ranking. Se você tiver elementos mais consistentes para informar, fique à vontade.
De qualquer forma, a cidade integra o patrimônio histórico brasileiro e é de fato uma gracinha, como diria a falecida Hebe. Tem uma gostosa praça central, com coreto para discursos ou para abrigar uma bandinha furiosa, e uma série de igrejas do tempo do Ariri Pistola, como diria minha mãe. Vale uma visita mais demorada, mas eu apenas circulei pelas ruas de paralelepípedo no tempo que antecedeu a largada, para desanuviar o espírito e tentar dominar o medo do calor.
Bastou partir, porém, na gostosa tarde de 17 de março passado, para tudo se acalmar. O sol se abrigou em algum recanto do céu; houve ameaça de chuva e, pela manhã, havia dado uma pingolejada, mas agora eram apenas nuvens que de vez enquanto se abriam para que um sol modesto iluminasse o sertão.
Mesmo assim, só 60% dos inscritos completaram a prova. Se fosse dia de sol e calor mais forte, aposto que eu também não chegaria ao final. É que o percurso, ainda que belo, é muito exigente. São colinas que se sucedem sem descanso. Há longas subidas (foto abaixo, Divulgação), algumas escaladas; e descidas que cobram esforço sem fim dos joelhos, da musculatura posterior das coxas, do cérebro que a tudo comanda.
Eu dividi a prova em blocos de 2,5 km. Pegava água em cada posto, por onde passava andando, e levava mais um copinho para mais uns goles hidratação na metade do percurso até a estação seguinte; entre um e outro, trotava.
Assim, pude ver um terreno rico, cheio de verde, com moradores que cultivavam a terra e criavam alguns animais para abate: porcos, cabras, até um gado ou outro vi.
E as gentes vinham nos ver. Ao longo de todo o caminho, passando por lugarejos, pequenas povoações ou mesmo em trechos desertos, sempre aparecia alguém na estrada para saudar os corredores, gritar alguma brincadeira, incentivar, esquentar o coração.
Nos povoados, era dia de festa, e as famílias levavam as crianças para a beira da estrada para baterem mão com a mão dos atletas. No sertão deserto, vez que outra se via alguém solitário no morro, abanando de longe o seu apoio. Fiquei emocionado com uma vó, que colocou uma cadeira firme na terra vermelha e levou a netaiada para acompanhar o movimento (foto). Para mim, é o carinho na estrada que resume a corrida Cidade de Aracaju.
Lerdos como eu chegam à capital com noite escura. No Nordeste, nessa época, os dias são brilhantes, mas o breu desce rápido, mal dá tempo de dizer lusco-fusco. É preciso aumentar a tensão, ficar esperto, de olhar firme no asfalto. Guardar forças para os últimos quilômetros e ser capaz de acelerar ao ouvir o som da festa que aguarda o corredor.
Foi o que eu fiz. Cheguei feliz (e ainda fechei com rima rica este texto de celebração da corrida por paixão).
PS.: Tirando a foto de Divulgação, devidamente identificada acima, as demais são de minha lavra