A Festa da Retomada é uma celebração da etnia Xokó, indígenas que vivem na Ilha de São Pedro, em Porto da Folha, Sergipe. A 40ª edição da festividade é o tema da dissertação de mestrado de Angelita Queiroz, defendida – e aprovada – no último dia 17, através de uma plataforma online, no mestrado do Programa de Pós-Graduação em Culturas Populares (PPGCULT) da UFS.
A banca examinadora teve a participação de Lucimário Apolonio Lima, o Cacique Bá, da comunidade indígena Xokó. Foi a primeira vez que um membro não acadêmico compôs uma banca de pós-graduação na instituição.
O cacique integrou a mesa como quarto membro, somando-se à formação obrigatória de três participantes: o orientador Fernando José Ferreira Aguiar; José Adelson Lopes Peixoto, professor da Universidade Estadual de Alagoas, como examinador externo; Roberto dos Santos Lacerda, como examinador interno. A professora Neila Dourado Gonçalves Maciel, escalada como suplente, também participou da banca.
Mestres de saberes e fazeres
A participação de um quarto membro nas bancas foi regulamentada pelo PPGCULT para abrigar os chamados Mestres da Cultura Popular. A UFS confere o grau de Mérito Universitário Especial em Saberes e Fazeres, Artes e Culturas Populares para aquelas pessoas não detentoras de título acadêmico que comprovem “destacada experiência e produção nos diferentes saberes, fazeres e linguagens de todas as áreas de conhecimento, popular e tradicional”.
O processo para concessão do título pela UFS se dá através de um edital – cada caso é analisado por uma comissão de pesquisadores da instituição. O Cacique Bá conquistou esse título ao ser aprovado pelo primeiro edital da UFS, no ano passado.
“A participação do Cacique Bá é o reconhecimento de que, de fato, os mestres de saberes e fazeres são as pessoas mais legítimas para poderem avaliar o que está sendo dito sobre elas. É uma possibilidade de eles também terem esse lugar de fala. É um diálogo honesto, humanizado, dentro das relações da produção do conhecimento científico com essas outras formas de saberes e conhecimento”, analisa Fernando Aguiar.
Para o Cacique Bá, ser o primeiro membro não acadêmico a integrar uma banca de mestrado da UFS é motivo de orgulho. “Por ser um fato inédito, me sinto muito honrado. Com certeza, isso representa o espaço conquistado pelo nosso povo. Apesar de o país ainda ter uma certa forma de enxergar os índios, a minha participação significa um avanço”, avalia.
Segundo Fernando, a UFS dá um passo significativo ao reconhecer, através de uma equivalência de título, mesmo não sendo a precursora, a importância e o conhecimento de grandes nomes da cultura popular do Brasil.
“Sua participação nos fortalece como universidade inclusiva, que reconhece, efetivamente, outras formas de saberes e de conhecimentos para além da que ela produz. É um diálogo de aproximação entre o conhecimento acadêmico e os saberes populares e tradicionais. Mais do que isso, é uma forma de nos integrarmos, de uma forma coesa, fortalecida e empoderada, com a própria sociedade em que estamos inseridos, a partir da própria pluralidade e da diversidade étnico-cultural e étnico-racial”, defende.
Outra etapa almejada é a participação dos Mestres em atividades da UFS – como as de extensão, por exemplo -, que estejam relacionadas com seus conhecimentos, podendo ser remunerados para isso. Há um processo em tramitação na instituição que regulamentaria essa possibilidade, como já ocorre em outras universidades.
A Festa da Retomada e o tripé identitário
A Festa da Retomada é um momento de celebração e manifestação cultural que acontece anualmente no dia 9 de setembro, recordando a data em que o povo Xokó retomou a Ilha de São Pedro, no ano de 1979. Angelita Queiroz investigou os elementos constituintes da cerimônia: o Ouricuri, a Dança do Toré e a Celebração na Igreja. Segundo a pesquisadora, eles configuram um ambiente de análise sobre a autoafirmação identitária dos Xokó.
“A pesquisa foi uma verdadeira imersão nos livros, no Rio São Francisco e na Ilha de São Pedro com toda comunidade, tendo como ambiência de análise a 40ª Festa da Retomada dos Xokó, que aconteceu em 09 de setembro de 2019. A Comunidade Indígena Xokó é linda, com um povo extremamente organizado e acolhedor. Só tenho que agradecer por tudo que vivenciei durante o período do mestrado realizado no PPGCULT, que possibilitou toda essa imersão”, diz.
O Ritual do Ouricuri é “uma ocasião em que apenas os indígenas se deslocam para a mata e por lá permanecem durante três dias e três noites em contato com os costumes e o modo de viver dos seus ancestrais”, descreve a pesquisadora em seu trabalho. “É um momento de rememorar e vivenciar o contato com os recursos naturais, sem o uso da eletricidade e da tecnologia, efetuando assim um desprendimento total do mundo moderno”, analisa.
O segundo elemento, a Dança do Toré, ocorre quando os indígenas retornam do Ouricuri e se encontram com a comunidade na Ilha de São Pedro, para comemorarem com todos. É uma dança “muito sincronizada, com passos fortes, pés descalços no chão de terra, o olhar também voltado para a terra, movimentos precisos e repetitivos intensificados com o pé direito, ao som do maracá (chocalho indígena)”, relata Angelita.
A Dança do Toré prossegue simultaneamente ao translado de todos os indígenas e visitantes, da Praça em direção ao Pátio da Igreja de São Pedro, onde acontece uma celebração festiva em louvor à Retomada.
Na avaliação de Fernando Aguiar, o estudo desenvolvido por Angelita ajuda a preservar a tradição da comunidade. “Ela faz com que as pessoas tenham acesso à cultura e reconheçam que, mesmo que os Xokó sejam socialmente, etnicamente e culturalmente diferentes, eles fazem parte e integram o que chamamos de povo sergipano”, pontua.
O Cacique Bá também acredita que a pesquisa pode contribuir com a preservação da cultura dos Xokó. “É uma marca que a comunidade nunca vai perder. Nós iremos acabar, mas a pesquisa vai persistir e vai resistir por toda a vida, servindo como instrumento de estudos para outros. De certa forma, a cultura se fortalece com esse trabalho, porque vai ficar registrado, marcado”, analisa.
A comunidade Xokó
Localizada na Ilha de São Pedro, Porto da Folha, a comunidade Xokó é o único grupo indígena de Sergipe. Identificados pelos jesuítas no século XVI, seus habitantes tiveram suas terras tomadas, recuperando a ilha de São Pedro somente em 1979. Em meados dos anos 90, a FUNAI homologou a Caiçara, anexando a Ilha de São Pedro, constituindo assim a terra indígena da etnia Xokó.
Em comemoração à sua volta à Ilha de São Pedro, os Xokó realizam todos os anos, no dia 9 de setembro, a Festa da Retomada. “Comemoramos porque foi a partir da nossa saída da Caiçara para a Ilha que começamos a conseguir a nossa liberdade. Mas isso custou caro, foram muitas noites mal dormidas, perseguições e ameaças. Antes de virmos para a ilha, éramos impedidos de dançar o Toré, cantar o Toré, de trabalhar para nós mesmo. Vivíamos como escravo. Então é a comemoração da nossa liberdade, da reconquista do nosso território”, relata o Cacique Bá.
Para Angelita, a comunidade é símbolo de resistência. “É uma representatividade muito bonita e singular para o estado, visto que os Xokó apresentam um arcabouço histórico de extrema relevância para compreensão de alguns acontecimentos no passado e congregam um conjunto de ritos e elementos fundamentais para sobrevivência e autoafirmação da comunidade”, destaca.
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