por Camilo Vannuchi*
Fico aqui pensando no Ricardo Melo, que acaba de ser reconduzido à presidência da EBC por decisão do ministro Dias Toffoli, do STF. É evidente que a liminar não será acatada de imediato pelo desgoverno Temer. Cabe recurso, e isso significa que os operadores do golpe farão o que for preciso para reverter a decisão no plenário da Corte.
Ainda assim, Ricardo Melo está autorizado a retomar o posto. Não o conheço. E talvez por isso não consigo deixar de imaginar o que se passa na cabeça dele numa hora como esta.
É sempre árida a tarefa de voltar a uma terra devastada pela peste, fixar novamente residência nos escombros de uma praça devastada sem que tenha sido assinado o armistício.
Quantos saíram da EBC nos últimos dias?
Qual o moral da tropa na atual conjuntura?
Qual o papel de uma empresa pública de comunicação na ótica pré-cambriana desse pseudogoverno, mais afeito a relações de vassalagem e compadrio do que aos ideais de transparência e democratização da informação?
No lugar de Ricardo Melo, eu teria o impulso de, vencida a causa, mandar tudo às favas, a EBC e todo o circo de horrores que rege o protogoverno de Michel Temer. Sim, eu sei que a EBC tem um estatuto que lhe garante independência, coisa e tal. Mas o gesto de atropelar essa autonomia e destituir seu presidente nos primeiros dias de desgoverno mostra com clareza o que devemos esperar da política de comunicação social dessa turma. E alerta para a possibilidade de novas espocadas. Haverá clima para fazer um trabalho decente nessas condições?
Aliás, essa parece ser a tônica geral do desgoverno Temer.
O que podemos esperar de um Ministério da Cultura que deixou de ser ministério numa canetada e voltou a ser por pressão popular? Qual o valor de fato que Temer dá a esse ministério?
O que podemos esperar de um Ministério da Educação que em sua primeira agenda pública recebe o professor livre-docente Alexandre Frota?
O que podemos esperar de uma Secretaria de Políticas para as Mulheres que parece mais à vontade com salmos e versículos do que com o debate sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres?
Flávia Piovesan, titular dos Direitos Humanos, conseguirá desempenhar um trabalho minimamente decente tendo como chefe o mesmo Alexandre de Moraes que criminaliza protestos e autoriza a polícia a descer o cassete em estudantes?
O cenário é tão avassalador que uma eventual saída de Ricardo Melo seria facilmente justificável. Uma saída soberana, espontânea, por opção. A saída de quem poderia ficar, mas não quer. Por outro lado, a opção por permanecer é ainda mais ousada, corajosa, militante. Representa a escolha pelo caminho mais difícil, o caminho da resistência.
Se mantiver o cargo, Ricardo Melo terá de resistir duplamente. Além de desempenhar um intenso trabalho para manter e melhorar a qualidade de uma empresa pública de comunicação num país domesticado (e anestesiado) por uma mídia corporativa nem sempre afeita à ética e à democracia, Melo assumirá ainda o desafio de preservar autonomia e independência numa gestão que o enxerga como um adversário, uma pedra no sapato. Não à toa, uma gestão que tem justamente na mídia corporativa seu alicerce mais sólido e robusto.
Um episódio pessoal de 1975 guarda certa semelhança com este. Sou filho de ex-preso político. Meu pai ia para o terceiro ano de Medicina na USP quando caiu. Ficou preso de 1970 a 1975. Ao deixar a prisão, foi impedido de retomar os estudos pela administração da universidade. A USP o havia jubilado por abandonar os estudos e não comparecer ao período de matrícula. O fato de estar preso, e por isso não poder comparecer, parecia um mero detalhe aos olhos kafkianos do reitor.
Meu pai havia desistido de estudar medicina durante o período no cárcere, mas entendia como inegociável o direito de retomar o curso. Entrou na Justiça, garantiu o direito de reassumir a vaga, e só então anunciou sua saída. Os papéis tinham sido invertidos. Agora, não era a Faculdade de Medicina que fechava as portas para ele, mas ele que fechava as portas para a Faculdade de Medicina. No anjo seguinte, entrou para o curso de jornalismo, também na USP. Pode parecer pouco, mas não é. Trata-se, sobretudo, da garantia de direitos. Tem a ver com algo que está fora de moda, mas que mantém certo charme: a democracia.
Nesse sentido, fico feliz que Ricardo Melo tenha a chance de escolher. À frente da EBC ou fora dela, já o considero pacas.
Camilo Vannuchi* – Jornalista, escritor, mestre e doutorando em Ciências da Comunicação pela USP, membro da Comissão Municipal da Verdade da Prefeitura de São Paulo.
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