Quase um ano e cinco meses após a apresentação apoteótica de Ronaldinho Gaúcho, o Flamengo vê se repetir uma sina que frustra o torcedor e esvazia o caixa do clube. O craque chegou para escrever seu nome na história rubro-negra, mas saiu debaixo de críticas ao seu desempenho em campo e pelo comportamento fora dele. R10 já até trocou de camisa, mas ainda tem a receber do clube carioca.Veste a alvinegra do Atlético-MG e cobra dos rubro-negros suposta dívida no valor estratosférico de R$ 40 milhões. Ao ser o primeiro dos grandes jogadores a esvaziar no clube o armário com liminar debaixo do braço que suspende o contrato, entrou para o seleto rol dos craques também da cobrança: juntou-se a nomes de peso internacional como Romário, Petkovic e Gamarra. Em todos os casos, o divórcio custou caro.
O valor somado dos quatro medalhões na cobrança ao clube chega a assustadores R$ 85 milhões – o litígio de R$ 40 milhões com Ronaldinho ainda não tem decisão final da Justiça. Desses, foram quitados R$ 15,7 milhões. A história é sempre a mesma: o clube deve salários, Fundo de Garantia, direitos de imagem, entre outros encargos trabalhistas. Os números de R10 são os mais altos. Mas os de Romário, Petkovic e Gamarra também dão um bom prejuízo.
O Baixinho, por exemplo, faturou na Justiça R$ 25 milhões – até agora, recebeu do clube R$ 9 milhões. A cobrança do sérvio atingiu a cifra de R$ 17 milhões. O número de parcelas quitadas a partir do acordo feito em 2009 não foi informado pelo clube, tampouco pelos advogados do ex-jogador. Antes desse parcelamento, o sérvio já havia recebido cerca de R$ 4 milhões.
A de Gamarra é a mais baixa: R$ 3 milhões – e o clube já pagou R$ 2,7 milhões ao ex-zagueiro paraguaio. As negociações das dívidas foram tão confusas, com várias paralisações nos pagamentos por parte do clube, que os próprios representantes jurídicos dos ex-atletas tiveram dificuldade de calcular o valor atual, ainda sujeito a mudanças, especialmente no caso de Pet.
– Não sei dos valores. Não participei de nada com relação a Pet, Gamarra e Romário. Depois, poderei falar a respeito do caso do Ronaldinho, mas não agora, pois está sob segredo de Justiça – limitou-se a dizer o vice jurídico do Flamengo, Rafael de Piro.
Junior critica mania de grandeza
Contratados para se tornarem ídolos e alavancarem a marca Flamengo, os craques de nível internacional, pertencentes a gerações pós-Zico, deixaram o clube em divórcios conturbados. Dos quatro, Petkovic, sem dúvida, foi o que deu mais resultados em campo. Mas não apaga a dificuldade de receber os atrasados de um clube que nem sempre cumpre com as obrigações trabalhistas.
– Na verdade, na maior parte dos casos, o retorno não valeu todo o investimento. Desses jogadores, o Pet certamente foi o que mais rendeu. No caso do Ronaldinho, enquanto o contrato com a Traffic estava valendo, até que teve boas atuações. A coisa caminhava. Mas depois que a parceira saiu, desandou – afirmou o comentarista Junior.
Chamado de Capacete nos anos 1970 e 1980, quando foi tricampeão brasileiro, depois de Maestro nos anos 1990, quando conduziu o Flamengo ao penta brasileiro, Junior tem um recorde invejável: foi o jogador que mais vestiu a camisa vermelha e preta. Entende como poucos o clima que cerca o Flamengo e tem sua explicação para os sucessivos problemas com os astros.
– Primeiramente, isso acontece por presunção e prepotência do clube. É a vaidade de querer contratar um grande jogador, a mania de grandeza das diretorias. Querem badalação, visibilidade. Isso tudo sem planejamento. Não levam em conta a identificação com a camisa, pelas características do jogador. O que fica mais acentuada é a falta de responsabilidade. Os contratos precisam ser mais amarrados, para poderem ser honrados. Sempre terminam com o jogador com certa razão. Trabalhar sem receber é complicado. Há direitos e deveres. O clube contrata sem responsabilidade, o jogador vai embora, entra na Justiça, e fica tudo para a outra diretoria que entra.
Junior fala com autoridade. Cria da Gávea e um dos maiores idolos do clube, nem ele escapou de problemas com a diretoria rubro-negra no passado. Quando voltou ao Flamengo em 1997 para ser treinador, saiu também com uma rusga e foi parar na Justiça.
– Mas o meu caso foi completamente diferente. Quando fui treinador em 1997, sumiram com uma cópia do meu contrato de imagem. Entrei na Justiça em todas as instâncias. Em 2004, quando o Márcio Braga me chamou para ser diretor de futebol, fiz um acordo. Abri mão de grande parte, do contrário não poderia voltar a trabalhar no clube – disse o ídolo, que recebeu R$ 1,2 milhão em parcelamento a longo prazo.
Se o atual comentarista da TV Globo saiu do Flamengo e depois voltou sem mágoas e pela porta da frente, Ronaldinho teve um divórcio praticamente irreconciliável. Junior ficou triste pela forma como o camisa 10 deixou o clube. Mas também esperava mais da performance do campeão mundial em 2002, apesar de saber que o rendimento jamais seria o mesmo dos tempos de Barcelona, quando foi eleito duas vezes pela Fifa o maior do mundo.
– Lamento porque eu gosto muito do Ronaldinho como pessoa, é um cara legal. Desses aí das últimas gerações, é um dos que mais respeitam a velha-guarda. Mas acho que perdeu uma chance de ouro. Depois de ser recebido do jeito que foi, por mais de 20 mil pessoas, no Flamengo, a dois anos da Copa… Ele conquistaria algo muito importante. Achei que ficaria motivado com aquela recepção. Por outro lado, quando o clube não cumpre com os deveres, o atleta desanima. Houve erro das duas partes.
Caso Romário
A festa para a chegada de R10 não foi o único caso de euforia que terminou em divórcio com marcas nos tribunais. Quando desembarcou no Rio e foi apresentado à torcida em gigantesca carreata, Romário ainda era o maior jogador do planeta. O ano era o de 1995, seguinte ao da conquista do tetra mundial pela Seleção Brasileira. Tratado como herói, o craque chegou do Barcelona para ser o principal nome do elenco no centenário rubro-negro.
Romário mexeu com o Flamengo. Para o bem e para o mal. Marcou 204 gols em 240 jogos, ganhou dois Cariocas e uma Mercosul, mas, na verdade esperava-se mais do Baixinho. Não conquistou Brasileiro e sequer vaga para disputar a Libertadores. Problemas com treinadores – foi, a exemplo de Ronaldinho, o principal responsável pela queda de Vanderlei Luxemburgo, só que em 1995 -, jogadores e dirigentes nas idas e vindas – saiu e voltou duas vezes em quatro anos – culminaram em 1999, na fase final da Copa Mercosul.
Durante uma viagem para Caxias do Sul, o jogador se meteu em confusão quando deixou a concentração para prestigiar a “Festa da Uva” com vários jogadores e modelos. A escapada acabou em punição. Acabou demitido pelo presidente da época, Edmundo Santos Silva. O jogador foi para o Vasco e entrou na Justiça contra o Rubro-Negro por atrasos de salários, FGTS, direitos de imagem e danos morais.
Romário cobrava R$ 15 milhões. Ganhou na Justiça e, anos depois, fez acordo para quitar a pendência. O Flamengo ficou de pagar com a verba que recebia do Clube dos 13. De 2004 a 2010, cumpriu o acordo. Com o fim da entidade, em 2011, simplesmente passou a ignorar as parcelas que ainda devia. Por causa da inadimplência, a dívida já pulou para R$ 25 milhões.
– No contrato firmado com a RSF (Romário de Souza Farias e Participações) com o Flamengo em 5 de janeiro de 2004, foi acordado o pagamento da dívida de R$ 15.550.000 em 144 parcelas de R$ 108 mil, corrigidas a cada 12 meses. As ações eram na Justiça comum, na 33ª Vara Cível, e na Justiça do Trabalho, na 47ª Vara do Trabalho – afirmou o advogado Paulo Reis.
Ex-presidente do Flamengo entre 1995 e 1998 e vice de 2005 até 2009, Kleber Leite foi o dirigente que executou o projeto Romário. Se durante o seu mandato os pagamentos foram cumpridos, depois a coisa desandou na gestão Edmundo Santos Silva, que o sucedeu. Até hoje indignado pela forma como o jogador saiu da Gávea, Kleber não poupou críticas à gestão atual no caso Ronaldinho.
– Tudo isso é uma imensa irresponsabilidade. Esse assunto do Ronaldinho começou mal, caminhou mal e terminou mal. O Flamengo assumiu uma dívida de R$ 70 milhões sem ter um contrato assinado com a Traffic. Deu no que deu. No caso do Romário também houve irresponsabilidade. Mandaram o jogador embora de uma delegação sem amparo jurídico. Aí, além do processo pelo não pagamento de salários, ainda recebeu outro por danos morais. E o clube fica prejudicado.
Kleber, no entanto, não é contra o clube tentar contratar grandes astros. E defende a passagem de Romário no clube, apesar de todos os problemas.
– Quando fui fazer a oferta por ele, já tinha tudo bem amarrado. É assim que tem que ser. A questão não é não contratar. Acho que o Flamengo tem que pensar grande, do tamanho que tem. Sonhar com craques do nível do Romário, do Ronaldinho. E é claro que o Romário deu retorno. Ganhou dois Cariocas, Copa Ouro, Mercosul, que é um título internacional. Fora que a contratação dele representou uma retomada da autoestima. Sacudiu a torcida no país inteiro. Na época, aumentou o número de sócios pagantes de 3 mil para 45 mil. Não é só por títulos que se mede a passagem do jogador pelo clube.
Dívida com Pet
Quem dá valor a títulos e grandes atuações em jogos decisivos não pode deixar de reconhecer a importância de Petkovic para a história do Flamengo. O gol de falta aos 43 minutos do segundo tempo que deu o tricampeonato carioca em 2001 vira e mexe aparece em programas esportivos. O lance já era suficiente para torná-lo ídolo eterno. Mas teve mais. Oito anos após o triunfo, o sérvio ainda conduziu o time, com Adriano, ao título brasileiro em 2009. Só que as atuações memoráveis, nas duas ocasiões, tiveram um custo que pode ser muito maior para os cofres rubro-negros.
Após o primeiro adeus ao Flamengo, Pet entrou na Justiça reclamando de salários atrasados, Fundo de Garantia e direitos de imagem. O Flamengo chegou a pagar aproximadamente R$ 4 milhões ao jogador. Porém, com constantes penhoras sobre suas receitas, oito anos depois, o clube negociou a volta do sérvio e um parcelamento da dívida restante.
Foi combinada uma antecipação de R$ 600 mil ao jogador e 47 parcelas de R$ 200 mil – o que, somadas a honorários de sucumbência e liberação de valores penhorados, totalizava R$ 13 milhões. Neste acordo, feito na gestão de Delair Dumbrosck, o total da dívida corrigida – incluindo o que já fora pago ao atleta – foi reconhecido em R$ 17,1 milhões.
Com os novos atrasos nos pagamentos deste acordo, o clube ficou sujeito à multa prevista no documento de 30% sobre o valor total da dívida (R$ 17,1 milhões). O montante exato que o Flamengo deve hoje a Petkovic é incerto. Está sendo calculado de acordo com movimento recente no processo. Josias Cardoso, procurador do sérvio, não quis confirmar os números. Alegou segurança ao cliente. O escritório do ex-jogador não retornou as ligações. Petkovic foi ao “Tá na Área”, programa do SporTV, na última terça-feira, e evitou falar sobre os valores.
– Depois da dívida de 2009, fui realmente à Justiça, era uma cobrança da minha primeira passagem pelo Flamengo. Chegou realmente a esses valores. Na negociação, perdoei, abri mão de metade do dinheiro e fiz um acordo. Esse acordo foi descumprido em 2010. Fiz novo acordo, perdoando o Flamengo de novo.
Ércio Braga, diretor jurídico do Flamengo quando Delair Dumbrosck assumiu interinamente a presidência – Márcio Braga tirou licença por motivos de saúde -, disse que pediu demissão após o acordo do clube firmado com o jogador. Segundo ele, a negociação só não foi boa para o Flamengo.
– Botei o cargo à disposição na época porque considerei o acordo lesivo. O valor negociado ficou bem acima do de débito. O Flamengo ainda pagou os honorários do advogado dele. Um absurdo.
Delair Dumbrosck discorda da afirmação de que o acordo com Pet foi ruim para o Flamengo. E põe o aumento da dívida com o ex-jogador na conta da atual presidente.
– De forma alguma foi lesivo o contrato. Reduzi a dívida, que já era de R$ 17 milhões, para R$ 10 milhões. Pulou de novo para os R$ 17 milhões porque o Flamengo começou a atrasar os pagamentos e aí veio a multa. Foi erro da atual diretoria.
Gamarra
Petkovic não foi o único astro gringo a deixar o clube lembrando a frase com sotaque do ex-tricolor paraguaio Romerito tão conhecida nos anos 1980. “Quiero mi dinero” virou mantra também para Carlos Alberto Pavón Gamarra. Na época considerado o maior zagueiro do mundo, o paraguaio chegou com banca e alto salário. Em volta com uma série de contusões e salários atrasados, brindou os torcedores rubro-negros com seu futebol talentoso por apenas 30 partidas, com um gol marcado.
Os constantes atrasos nos salários, depósito de Fundo de Garantia e pagamentos dos direitos de imagem fizeram o jogador desistir de continuar no clube. Rumou para o futebol grego e acionou o Flamengo na Justiça. Dos craques contratados sob expectativa de marcarem época, foi o que menos brilhou na relação custo-benefício e o que mais acabou recebendo proporcionalmente na Justiça: dos R$ 3 milhões, já recebeu R$ 2,7 milhões.
A relação conturbada do Flamengo com craques de prestígio internacional é apenas um dos capítulos. Segundo um ex-diretor, que pediu para não ser identificado, o quadro geral é ainda mais desolador.
– Há outras coisas lá dentro que as pessoas não imaginam. Se um salário de qualquer jogador atrasar por um dia, já existe multa de 30%. Lá dentro, tem muito funcionário com desvio de função. Quando sai, entra na Justiça e ganha. Não existe a menor política de pessoal. Como pode acontecer uma coisa dessas num clube como o Flamengo? – afirmou.
Como o Flamengo reconhece ao menos uma dívida de R$ 5 milhões com Ronaldinho Gaúcho, a única coisa certa é que a dívida milionária do clube com craques vai aumentar.
Por Márcio Mará e Vicente Seda – Globo Esporte, Rio de Janeiro