Menos de cinco meses depois da enchente de 18 de de junho de 2010, que transformou Rio Largo em uma das cidades mais devastadas pela catástrofe, um grupo de empresários e políticos se transformou em quadrilha e engendrou uma trama que só agora, um ano e cinco meses depois, foi descoberta e começa a ser desmantelada.
O situação de emergência vivida pela cidade foi aproveitada pela ambição desmedida do grupo, com a conivência de dez vereadores – segundo consta, mediante propina – para ganhar dinheiro fácil. Na verdade, uma fortuna. O escândalo já ganhou repercussão nacional.
Na quinta-feira (17), uma operação policial conjunta da Força Nacional com a polícia estadual, coordenada pelo Gecoc, do Ministério Público Estadual, e autorizada pelos juízes da 17ª Vara Criminal de Maceió, resultou em 18 mandados de prisão e outros de busca e apreensão.
Quem é quem
Os dezoito acusados pelo Gecoc, na denúncia de 28 páginas (fora os anexos com documentos que comprovam as acusações) são sete empresários (quatro deles de fora de Alagoas, sendo três do Pará e um de Goiás), um engenheiro a serviço da Prefeitura e todos os dez vereadores de Rio Largo. São eles:
Moisés Carvalho Pereira, residente em Redenção (PA), diretor da Buriti Imóveis e sócio administrador da MSL Empreendimentos Imobiliários;
Luiz Pereira Martins, residente em Goiânia (GO), diretor da Agropecuária Umuarama, sócio administrador da MSL;
Marcelo Pereira Lessa, residente num condomínio de luxo à beira-mar da Jatiúca, também sócio administrador da MSL;
Antônio Lucena Barros, residente em Redenção (PA), também sócio administrador da MSL, instalada na Fazenda Thormes de Pratagimirim, zona rural de Rio Largo;
Sidney Guimarães Pena, residente em Redenção (PA), administrador da MSL;
José Paulo Cavalcante Neto, diretor e representante legal da S/A Leão Irmãos Açúcar e Álcool, em Utinga;
Jorge Octaviano Ferreira Dubeux, também diretor e representante legal da Usina Utinga Leão;
Osair Tavares Silva Júnior, engenheiro, residente na Av. Robert Kennedy, na beira-mar da Ponta Verde;
Vereadores: Aurízio Esperidião da Hora, Cícero Inácio Branco, Ionaide Cardoso Martins, Jefferson Alexandre Cavalcante, José Nilton Gomes de Souza, Luiz Phellippe Malta Buyers (conhecido como Lula Leão, presidente da Câmara Municipal), Milton José Pontes Filho, Maria das Graças Lins Calheiros e Thales Luiz Peixoto Cavalcante.
O vereador Reinaldo Cavalcante Moura chegou a ser preso na quinta-feira, mas foi colocado em liberdade libertado na noite desta sexta (18), com novo decreto da 17ª Vara, para se transformar em réu colaborador.
O prefeito de Rio Largo, Antônio Lins Souza Filho, o Toninho Lins (PSB), eleito em 2008 e que vinha se anunciando como pré-candidato à reeleição, é tratado na denúncia do Gecoc como “chefe da quadrilha e da organização criminosa”. O Ministério Público também pediu sua prisão, mas como o prefeito, pelo cargo que ocupa, tem foro privilegiado, o poder de mandar prendê-lo é exclusivo do Tribunal de Justiça de Alagoas. O pedido do Gecoc está nas mãos do desembargador Otávio Leão Praxedes, que deve dar sua decisão a qualquer momento.
A desapropriação “amigável”
Em 9 de novembro de 2010, menos de cinco meses após a tragédia das enchentes, ,o prefeito Toninho Lins assinou o decreto nº 67, declarando de utilidade pública para fins de desapropriação, parte da Fazenda Utinga, pertencente à S/A Leão Irmãos Açúcar e Álcool (Usina Utinga Leão). A propriedade tem 2.254.000m2, ou 252,40 hectares, o equivalente a mais de 300 campos oficiais de futebol juntos.
O amplo terreno deveria ser utilizado para a construção de um loteamento destinado à população de baixa renda de Rio Largo. O decreto parecia bem-intencionado.
Mas logo a seguir, fatos estranhos se sucederam. O valor fixado pela prefeitura para ser pago à usina como indenização foi irrisório: R$ 700 mil. Mesmo assim, a desapropriação foi feita de forma “amigável”. O normal seria que a usina entrasse na Justiça para aumentar o valor da indenização.
Nada disso aconteceu. Os dois diretores e representantes legais da S/A Leão Irmãos, José Paulo Cavalcante Neto e Jorge Octaviano Ferreira Dubeux, “cumprindo ordens e expressa determinação de Toninho Lins”, conforme a denúncia do Gecoc, “no mesmo dia e sem nenhuma espécie de contestação, aceitaram pacificamente o irrisório valor ofertado”.
A escritura de desapropriação foi lavrada em tempo recorde: duas semanas depois do decreto, em 23 de novembro de 2010, a papelada já estava assinada e registrada no Cartório de Imóveis e Hipotecas de Rio Largo. O terreno passava ao patrimônio da Prefeitura, supostamente para que ali fossem erguidas habitações populares, depois da inundação que arrasou centenas de casas pobres.
O detalhe que mostra a ousadia da quadrilha é que o grupo criminoso usou a tragédia das enchentes como pretexto: com o estado de emergência declarado na cidade, o plano podia deslanchar sem maiores entraves burocráticos e legais.
A avaliação camarada
A denúncia do Gecoc diz que a desapropriação a preço irrisório já estava combinada com os sócios e administradores da MSL Empreendimentos Imobiliários, Moisés Carvalho Pereira, Luiz Pereira Martins,. Marcelo Pereira Lessa, Antônio Lucena Barros e Sidney Guimarães Pena.
A sub-avaliação do valor do imóvel foi feita pelo engenheiro Osair Tavares Silva Júnior, “também denunciado e membro da organização criminosa, a quem coube, dolosamente, em benefício da quadrilha, depreciar o valor da área expropriada”, diz a denúncia.
O engenheiro depreciou a avaliação para que o terreno fosse desapropriado por R$ 700 mil, diz a denúncia, “omitindo no laudo de análise declarações que nele deveriam constar”. E acrescenta que o mesmo engenheiro avaliador, em outro documento dele próprio, mostra como o terreno é precioso para a especulação imobiliária.
Terreno é um “filé”
“A área é extremamente valorizada, segundo o laudo de análise expedido por ele mesmo [engenheiro Osair Tavares]”, diz a denúncia do Gecoc. “Está situada dentro da zona urbana de Rio Largo, cercada por loteamentos já ocupados, é plana e ideal para o parcelamento urbano, toda a infraestrutura é de fácil implantação e manutenção, não corre o risco de inundação, já que encontra-se na parte alta da cidade e longe de mananciais que podem provocar tal risco, não se constitui de aterro de nenhuma espécie, possui inclinação máxima de 5%, não pertence a área de preservação ecológica, não possui cursos d’água, bosques ou construções em seu interior, não se encontra exposta a poluição nociva ou insuportável à ocupação humana e apresenta condições favoráveis para edificações”.
Resumindo, a área é daquele tipo que os corretores de imóveis definem como “um filé”.
Não à toa, a área está sendo dividida para um loteamento privado. O escândalo detonado com a prisão do grupo paralisou os trabalhos.
O “convencimento” dos vereadores
Feita a primeira parte no final de novembro de 2010 – a desapropriação a preço irrisório – passou-se à segunda fase do plano. Em 1º de dezembro, Toninho Lins encaminha projeto de lei à Câmara Municipal pedindo autorização para a prefeitura alienar (vender) o terreno desapropriado para “empresas que estivessem dispostas a realizar programas e ações habitacionais de interesse social”.
E foi tudo muito rápido, como a quadrilha pretendia, dizem os promotores do Gecoc.
Com o estado de emergência vigente à época em Rio Largo, o prefeito tinha o pretexto ideal para que a venda da área fosse feita sem licitação. Aí, a MSL Empreendimentos Imobiliários (que foi criada só para esse negócio) já estava a postos para se apresentar. O acerto estava feito, segundo o Gecoc.
O projeto estava cheio de irregularidades, como mostra a denúncia, a começar pela ausência de licitação. Portanto, era preciso “convencer” os vereadores a aprová-lo.
No mesmo dia 1º de dezembro de 2010, o projeto foi aprovado em regime de urgência pelas duas comissões da Câmara Municipal (a de Constituição e Justiça e a de Finanças e Orçamento), “valendo salientar que todos agiram seguindo ordens e expressas determinações de Toninho Lins, em benefício da quadrilha”, diz o documento do Gecoc.
No dia seguinte, 2 de dezembro, em votação no plenário, o projeto foi aprovado por unanimidade pelos dez vereadores. A sessão durou apenas cinco minutos.
Hoje, depois das prisões e dos primeiros depoimentos, vazaram informações de que os chefes do grupo teriam “adoçado o bico” dos vereadores de forma generosa. Todos os dez teriam recebido, além de dinheiro vivo, a promessa de lotes no terreno e cargos criados na Câmara para que nomeassem apadrinhados. Segundo essas informações vazadas, o prefeito Toninho Lins teria recebido o quinhão maior – algo na casa do milhão – e testemunhas relataram sinais exteriores de enriquecimento súbito dele após o negócio.
Há no processo um depoimento afirmando que o presidente da Câmara, Luiz Phelippe Malta Buyers, o Lula Leão, teria recebido um valor acima do que os demais vereadores embolsaram. Lula Leão teria sido acionista da usina e seu avô um dos fundadores da tradicional empresa; seu pai foi secretário do prefeito Toninho Lins e seu irmão, Marcos André, era secretário de Finanças da Prefeitura na época da transação, segundo essa testemunha.
Os dois “pulos do gato”
O detalhe é que, pelo projeto aprovado, o adquirente (MSL Empreendimentos) deveria fazer uso da área “exclusivamente para parcelamento do solo” – ou seja, para loteamento – “preferencialmente [e não exclusivamente] para a população de baixa renda”. Aí estava o primeiro pulo do gato. A área poderia ser usada para moradias de classe média, longe da destinação social.
O segundo pulo do gato é que, no projeto aprovado pela Câmara não havia avaliação do terreno para venda. Prevaleceu a avaliação irrisória que havia sido feita para a desapropriação. Resultado: a área foi vendida pelos mesmos R$ 700 mil da indenização, preço de custo. E quem foi o adquirente sem licitação? Claro, a MSL Empreendimentos Imobiliários. Estava tudo combinado, diz o MP.
Segundo a denúncia, houve um conluio. A empresa MSL foi constituída com a única finalidade de montar a negociata com o prefeito Toninho Lins e os vereadores.
Em 16 de dezembro de 2010, apenas 23 dias depois da desapropriação, o plano estava consumado. A MSL, pagando à Prefeitura de Rio Largo apenas R$ 700 mil, se tornava proprietária de uma área de excelente terreno urbano com 2 milhões 524 mil metros quadrados.
Em 21 dias, área já valia 30 vezes mais que a compra
Logo depois de comprada pela MSL, a área foi dividida em três propriedades, denominadas Fazenda Utinga I (com área de 924.262m2), Fazenda Utinga II (com 699.803m2) e Fazenda Utinga III (com 899.936m2). Em seguida, cada uma das propriedades foi avaliada – ironicamente – pelo setor de tributos da Prefeitura de Rio Largo, para efeito de IPTU. A primeira recebeu o valor venal de R$ 7.865.461,11, a segunda de R$ 5.955.323,53 e a terceira, R$ 7.658.455,36.
Ou seja, apenas 21 dias depois de ser vendida pela Prefeitura por R$ 700 mil, a área era avaliada pela mesma Prefeitura no valor total de R$ 21.479.240,00 – mais de 30 vezes o valor que a MSL havia pago.
E atenção: isso foi em dezembro de 2010. Atualmente, segundo estimativas idôneas do mercado, o valor real deve ultrapassar os R$ 30 milhões.
Este é o tamanho do lucro que, segundo a denúncia, foi dividido entre o prefeito, os diretores da Utinga Leão, os donos da MSL e a propina paga aos vereadores pela cumplicidade na aprovação do projeto.
Desdobramentos
A decisão dos juízes da 17ª Vara Criminal, autorizando as prisões e outras providências, indica que o escândalo terá outros desdobramentos.
Os magistrados decretaram também a busca e apreensão – cumprida nesta sexta-feira (18) – de documentos e equipamentos na concessionária de veículos Blumare, em Mangabeiras, pertencente ao empresário Marcelo Santos, conhecido como “Marcelinho Cabeção”, e em sua residência.
Os magistrados determinaram que fossem apreendidos no escritório da Blumare, e na residência de Cabeção, na Av. Álvaro Otacílio, à beira-mar da Jatiúca, “documentos relacionados à compra e venda ou expropriação de terras, computadores, notebooks, pen-drives, HD externo, DVDs e CDs”.
O motivo, segundo a decisão dos juízes da 17ª Vara, pode ser outra bomba: “O documento que ensejou a abertura de investigação pelo Ministério Público, o qual juntamos aos autos neste momento, cita a participação no esquema de Marcelo dos Santos, vulgo Marcelinho Cabeção, e de um atual conselheiro do Tribunal de Contas do Estado”.
O blog de Ricardo Mota, no Tudo na Hora, revela o nome do conselheiro sob suspeita: é o ex-deputado estadual Cícero Amélio. O blog informa também os motivos de seu suposto envolvimento no caso de Rio Largo, junto com Cabeção.
Qualquer providência contra o conselheiro, por conta do foro privilegiado a que ele tem direito, só pode ser tomada com autorização do Superior Tribunal de Justiça (STJ).