O feminicídio é, antes de tudo, o retrato escancarado do fracasso do Estado. Enquanto uma parcela da sociedade brasileira, infantilizada e anestesiada, discutia nas redes sociais sobre Havaianas e “pé direito”, a jovem Tainara Souza Santos lutava pela própria vida. Vítima de feminicídio, Tainara foi atropelada pelo ex-namorado, arrastada por cerca de um quilômetro e teve o corpo brutalmente dilacerado: pernas amputadas, o corpo nu pelo atrito com o asfalto, tudo filmado por pessoas que estavam no local. Ainda consciente, tentou cobrir com as mãos as partes íntimas expostas. Morreu trinta dias depois. O espetáculo da barbárie foi registrado, compartilhado e consumido como entretenimento.
A pergunta que se impõe é inevitável: o que nos tornamos com o advento das redes sociais — ou sempre fomos assim? O caso de Tainara não é exceção; é símbolo de um país que convive com contornos pandêmicos de violência de gênero, onde, em média, quatro mulheres são assassinadas todos os dias vítimas de feminicídio.

O feminicídio não é exceção: é projeto de negligência, escreve advogado Fábio Lemos – Foto: arquivo/pessoal
Diante desse cenário, governo e atores políticos recorrem à solução mais fácil e menos eficaz: o discurso do endurecimento penal. Volta à mesa a proposta de alteração constitucional para a aplicação de “penas perpétuas” aos crimes de feminicídio. A história já demonstrou, exaustivamente, que sempre que o Estado se mostra incapaz de enfrentar a criminalidade de forma estrutural, apela para o populismo penal — seja aumentando penas, seja transferindo, de forma velada, a responsabilidade para a própria vítima. Os dados são claros: punição isolada não previne crimes.
Não há solução simples para um problema complexo, profundamente enraizado na estrutura social brasileira, especialmente nas relações históricas de poder e dominação masculina.
O recrudescimento do crime de gênero não se revela apenas nos números, mas na escalada da crueldade e do ódio: mulheres são mortas, mutiladas, incendiadas; sofrem dezenas de agressões para terem o rosto desfigurado; são alvejadas por múltiplos disparos, feridas por instrumentos perfurocortantes, têm órgãos genitais mutilados e são vítimas de violência sexual. A violência não termina com a morte: ela produz crianças órfãs do feminicídio, marcadas por traumas permanentes. Apesar de avanços legislativos importantes — como a Lei Maria da Penha, a Lei Mariana Ferrer e a Lei do Feminicídio, esta última com penas que variam de 20 a 40 anos de reclusão — permanece evidente que lei sem política pública é letra morta.
O verdadeiro problema no combate ao feminicídio está na ausência de orçamento e de prioridade política para uma rede de proteção efetiva. As medidas protetivas de urgência — como as rondas Maria da Penha, tornozeleiras eletrônicas, botão do pânico, medidas de distanciamento e os canais 180 e 190 — existem, mas são insuficientes. Faltam moradia segura, assistência social contínua, acolhimento psicológico, autonomia financeira, acesso ao emprego e educação voltada ao enfrentamento da misoginia que se reproduz, com força crescente, na chamada machosfera das redes sociais. Sem isso, o ciclo da violência se perpetua.
É nesse contexto que o conceito de pré-crime deve ser compreendido não como autoritarismo, mas como antecipação responsável da tutela estatal: identificação de riscos, integração de dados, atuação coordenada entre Judiciário, segurança pública, assistência social e saúde para impedir que o feminicídio se concretize.
Por fim, é impossível negar a responsabilidade do Estado por não evitar o que era evitável. O atual Congresso Nacional parece incapaz de enfrentar temas estruturais do país, preferindo o conforto das pautas simbólicas. Enquanto isso, mulheres continuam morrendo. A sociedade, por sua vez, precisa assumir o dever urgente de desconstruir a cultura de subjugação feminina que naturaliza a violência e transforma a barbárie em espetáculo.
Por Fábio Lemos Lopes, advogado e especialista em violência, criminalidade e políticas públicas (UFS).
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