Beneficiados pela Câmara dos Deputados na votação que regulamentou a reforma tributária, os alimentos ultraprocessados não pagarão um imposto extra criado sobre produtos prejudiciais à saúde, embora matem anualmente no Brasil mais pessoas do que homicídios, acidentes de trânsito e tumores de mama e próstata.
O que aconteceu
A Câmara dos Deputados deixou os alimentos ultraprocessados fora do IS, o Imposto Seletivo apelidado de “imposto do pecado”. Alimentos como bolacha recheada, macarrão instantâneo e salgadinhos de pacote — pobres em nutrientes e ricos em sódio, corante, açúcar e conservantes — não recolherão IS, criado justamente para tributar os produtos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente.
Os alimentos ultraprocessados matam 57 mil pessoas por ano no Brasil. Esse número corresponde a 10,5% das mortes precoces de brasileiros entre 30 e 69 anos, indicou o artigo “Mortes prematuras atribuíveis ao consumo de alimentos ultraprocessados”, da USP, Fiocruz, Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e Universidad de Santiago de Chile publicada em novembro de 2022.
Os ultraprocessados provocam mortes por obesidade, doenças cardiovasculares e diabetes. Para estimar o total de mortes, o estudo coletou dados abertos do IBGE sobre o consumo de alimentos ultraprocessados. As informações foram separadas por sexo e faixa etária a partir dos 30 anos. Em seguida, os pesquisadores cruzaram esses dados com a mortalidade no Brasil para o período analisado.
Os dados coletados se referem aos anos de 2017 e 2018 em comparação com 2007 e 2008. “Para evitar o aumento [de mortes], o consumo deveria ter permanecido igual ao da década passada e não aumentado em 20%”, disse ao jornal da USP um dos autores do artigo, o pesquisador Eduardo Nilson.
Mais letais que homicídios.
As 57 mil mortes provocadas pelo consumo de ultraprocessados ultrapassam o número anual de óbitos por homicídios, câncer de mama, de próstata e acidentes de trânsito:
1 – 39.500 pessoas foram assassinadas no Brasil em 2023, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública;
2 – 33.894 pessoas morreram no trânsito em 2022, segundo dados divulgados em 2023 pelo Ministério da Saúde com dados do SIM (Sistema de Informações de Mortes);
3 – 18.139 mulheres morreram de câncer de mama e 2021, último dado do Instituto Nacional de Câncer;
4 – 16.055 homens morreram de câncer de próstata em 2021, último dado do SIM.
O imposto do pecado poderia aumentar o preço desses alimentos, reduzindo seu consumo. Um aumento de 10% no preço dos ultraprocessados no Brasil diminuiria seu consumo em 17%, em média, segundo um estudo que será lançado pelo Banco Mundial esse ano.
Além de provocar óbitos, os ultraprocessados sobrecarregam o SUS. O mesmo estudo estima que o sobrepeso e a obesidade custam por ano R$ 1,5 bilhão ao Sistema Único de Saúde.
Se o consumo desses produtos for reduzido, os óbitos também cairão, diz a pesquisa da USP. Caso a população reduza em 50% a ingestão de ultraprocessados, 29,3 mil vidas podem ser poupadas todos os anos.
Governo e deputados defendem isenção.
A isenção do IS aos ultraprocessados já estava prevista no texto da PEC enviada pelo governo. “Hoje [os ultraprocessados] majoritariamente são consumidos por ricos. Isso foi definido por critérios objetivos, não foi feito no chute”, afirmou em abril o secretário extraordinário da reforma tributária do Ministério da Fazenda, Bernard Appy.
A população pobre consome mais alimentos industrializados. “A disponibilidade de frutas e hortaliças pode ser limitada em bairros desfavorecidos e ser mais abundante em locais de maior condição socioeconômica”, diz Fernanda Rauber, pesquisadora no Departamento de Medicina Preventiva, que em 2022 consultou 18 mil pessoas nas periferias. “Elas também podem ter um custo mais elevado se comparado com outros alimentos in natura e minimamente processados, como arroz, feijão e farinha.
Já os deputados mantiveram a isenção justamente porque os mais pobres se alimentam de ultraprocessados. “Isso [ultraprocessados] é a base, digamos, da grande massa das pessoas mais humildes, que têm menos condições”, disse ao UOL o deputado Claudio Cajado (PP-BA), um dos relatores do projeto que regulamentou a reforma.
A justificativa é a mesma da Abia, a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos. “Aumentar a carga tributária sobre determinados alimentos não resolverá qualquer questão referente à saúde da população. Só fará a comida chegar mais cara na mesa dos brasileiros, prejudicando, sobretudo, os mais vulneráveis”, diz João Dornellas, presidente executivo da Abia.
A proposta do governo mantida pela Câmara “é muito tímida”. “Já temos evidências suficientes de que todos os ultraprocessados fazem mal à saúde, causam 57 mil mortes por ano”, afirmou ao UOL Marcello Baird, coordenador de advocacy da ACT Promoção da Saúde, ONG que defende política públicas para controle do tabagismo e álcool e defesa da alimentação saudável e atividade física.
“Os alimentos ultraprocessados são cuidadosamente formulados para ser tão saborosos e satisfatórios que são quase viciantes. O problema é que, para deixar os produtos cada vez melhores, os fabricantes os tornam cada vez menos parecidos com comida de verdade”.
Eric M. Hecht, pesquisador do Schmidt College of Medicine.
Outras vitórias dos ultraprocessados.
A reforma tributária zerou os impostos para 15 alimentos da cesta básica. Entre os produtos com alíquota zero estão farinhas, arroz, leite, manteiga, feijões, raízes, tubérculos, café, entre outros. A lista, porém, incluiu a margarina, feita com gordura ultraprocessada. O motivo é que o alimento faz parte do hábito da população pobre.
Os ultraprocessados celebraram outras vitórias. O macarrão instantâneo, leite fermentado, requeijão e iogurte terão imposto reduzido em 60%, o mesmo que incidirá sobre alimentos como sal, farinha e cereais.
A implantação da reforma será aos poucos. A reforma será feita aos poucos, com as mudanças sendo implantadas entre 2026 e 2033.
O objetivo da reforma é simplificar a tributação. A mudança cria o IVA (Imposto sobre Valor Agregado), que é a junção do IS com o IBC e o CBC. Enquanto o IBC recolherá imposto sobre bens e serviços para estados e municípios, o CBC recolherá o mesmo, mas para a União.
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Matéria produzida por Wanderley Preite Sobrinho, Do UOL, em São Paulo