O assunto está nos jornais, nas refeições em família, nas conversas entre amigos e colegas de trabalho, nas reuniões de negócios. O problema do trânsito, ou da mobilidade urbana, vem a cada dia ficando mais grave, dificultando a vida dos brasileiros. São horas de sono a menos, menos tempo para ficar com a família, mais combustível gasto, atrasos, perdas de produtividade, enfim, uma dor de cabeça generalizada.
As fontes do problema são antigas, começam desde a década de 1920, quando o presidente Washington Luis decretou que “governar é construir estradas”. A partir daí, sucessivos governos direcionaram nossa matriz de transporte para o modal rodoviário, em detrimento do ferroviário e aquaviário. O crescimento econômico recente, com a extraordinária distribuição de renda, consubstanciada no surgimento da chamada “nova classe média”, provocou um boom nas vendas de carros, motocicletas e caminhões. O reflexo disso pode ser visto em nossas cidades. Não há espaço para a nova frota em nossas velhas ruas.
Há um razoável consenso entre especialistas na matéria quanto à necessidade de melhorar o transporte coletivo, de forma a torná-lo uma alternativa viável ao automóvel. Isso faz todo o sentido, principalmente quando falamos daquelas pessoas cujo principal (e por vezes único) deslocamento diário é o trajeto de casa para o trabalho.
No Recife, tivemos nos últimos anos alguns investimentos feitos no metrô, em novos corredores de ônibus e na reorganização do trânsito, mas que ainda não foram suficientes para resolver o problema. O Governo Federal, juntamente com o Governo do Estado e a Prefeitura do Recife vem trabalhando em conjunto em novas ações visando melhorar o transporte público, como no caso das obras para a Copa 2014 (ver foto acima). A requalificação do corredor da Caxangá, os novos corredores de ônibus e os viadutos da Agamenon Magalhães são alguns exemplos.
Investir em transporte público convencional é fundamental para resolver o problema, mas o Recife precisa também de outras soluções, para complementar o trabalho já em andamento. Quando fui secretário das Cidades, preparamos um projeto para utilização do Rio Capibaribe como corredor de transporte coletivo. Utilizando esse modal poderemos transportar milhares de passageiros por dia, numa rota que vai de Camaragibe até o centro da cidade, passando por bairros como Casa Forte, Aflitos, Graças e Torre, com integração com outros modais de transporte, tais como o ônibus e o metrô.
Além disso, o Recife precisa se adequar aos novos tempos e investir também em transporte individual não poluente, como as bicicletas, convencionais ou elétricas, como mais uma opção de deslocamento, sobretudo para aqueles trajetos mais curtos. Uma parcela significativa de recifenses já usa a bicicleta como meio de transporte regular e precisamos garantir a esses e aos novos ciclistas a segurança necessária para o exercício do direito de ir e vir. Minha intenção durante este ano é trazer contribuições para o debate desta questão, pois por mais que possa parecer algo simples, “basta construir ciclovias” diriam alguns, trata-se de algo de difícil execução e, portanto, exige decisões difíceis.
A primeira dificuldade está no nível de concentração urbana de nossas cidades. No Recife a verticalização dos imóveis em muitos bairros torna inviável a desapropriação das áreas por eles ocupadas para a construção de vias públicas. Além do trauma que o deslocamento de famílias representa, o custo de desapropriações é proibitivo.
Diante disso, a implantação de ciclovias precisa ser feita por meio de uma permuta de uso, tal como ocorreu na Avenida Boa Viagem. Quando fez a construção da ciclovia, a prefeitura precisou diminuir tanto o espaço de calçada quanto o de estacionamento de veículos na faixa da esquerda da via. Em muitas das possíveis rotas de futuras ciclovias, haverá necessidade de fazer algo semelhante.
Nesse jogo de soma zero, onde para alguém ganhar, outros perdem, minha opinião é que o automóvel deve ceder espaço, para que este seja usado apenas por pessoas para quem o transporte coletivo e/ou as bicicletas não sejam opção viável, seja por sua condição física (como no caso de idosos) seja pelas características de seus deslocamentos.
E é nesse momento que surgem outras dificuldades, mas neste caso com soluções cuja implantação é mais simples. A primeira delas é a questão da segurança. Muitos recifenses migraram dos coletivos para os automóveis por não encontrar naqueles a segurança que julgam adequada. Face a isto, não basta construir a ciclovia, é preciso garantir a integridade física dos ciclistas. Para isso é preciso investir em soluções como um sistema de câmeras de monitoramento, juntamente com policiamento itinerante, como o realizado pelos policiais que fazem rondas no calçadão de Boa Viagem (de bicicleta, naturalmente) e a participação dos agentes de trânsito.
Os avanços tecnológicos recentes baratearam muito as bicicletas, inclusive as elétricas. Estas podem ser uma ótima alternativa para deslocamentos de casa para o trabalho quando os trajetos são menores que 10 km. Com pequenas adaptações, empresas e órgãos públicos podem construir bicicletários com tomadas para recarga enquanto as pessoas trabalham. Podem também construir vestiários com chuveiros e armários para que as pessoas possam trocar de roupa antes e depois do trabalho.
Esse é um modelo muito bem sucedido em vários países. Em Amsterdam, na Holanda, há mais bicicletas em circulação do que carros e motos somados. Elas são permitidas inclusive nos trens e VLTs, o que viabiliza o seu uso mesmo para aqueles que moram distante do trabalho. Já na cidade espanhola de Sevilha, o uso do transporte em duas rodas é mais recente que na Holanda. Após conviver com trânsito caótico numa cidade sem a possibilidade de construção de novas vias, o governo local iniciou uma revolução em 2007. Foram construídos mais de 120 km de ciclovias que servem a mais de 300 mil pessoas diariamente, seja no frio do inverno ou no verão escaldante da cidade. Assim como Recife, Sevilha tinha as mesmas dificuldades relacionadas a questões culturais e ocupação urbana, mas também tinha a seu favor uma topografia plana em grande parte da cidade.
Essas idéias são parte de um debate cujas decisões resultantes, por difíceis, carecem da intensa participação da sociedade. Precisa ser conduzido sem paixões, sem preconceitos e com um olhar para o futuro. Nossas cidades não suportam mais os milhares de novos carros e motos que chegam às ruas a cada dia (em Pernambuco são vendidos em torno de 7 mil veículos por mês). Sem novas soluções, é cada vez mais iminente o risco de um colapso em nosso trânsito, precisamos evitar isso da maneira mais inteligente possível.
* Este artigo foi publicado no portal Brasil247 no dia 29 de fevereiro de 2012 e faz parte das publicações semanais escritas pelo senador Humberto Costa para o site. O petista é o primeiro senador eleito pela legenda em Pernambuco e é ex-secretário das Cidades de Pernambuco.